A ciência usa muitos questionários. E isso é um problema.
Pesquisas de autorrelato são essenciais em algumas áreas do conhecimento. Mas temos uma tendência crônica a mentir para preservar nossa imagem – o que pode gerar resultados distorcidos em pesquisas sobre drogas, alimentação e sexo, e empurrar políticas públicas na direção errada.

Você está passeando com o seu cachorro quando um jovem te interrompe na calçada: “Eu sou estudante da Faculdade Piltover, do curso de Ciências Hextec. Estou fazendo uma pesquisa com pessoas na rua. Posso fazer umas perguntas?” Você topa, e vem a primeira questão: “O senhor prefere flash no D ou no F?”.
Para o leitor que não é fã de videogames, é provável que a indagação não faça o menor sentido – afinal, ela se refere a uma particularidade do jogo online League of Legends. Trata-se de uma pegadinha do streamer e gamer Digo Soares, que faz esse experimento e grava as reações dos entrevistados. A graça da coisa é justamente que seres humanos, em geral, ficam constrangidos em admitir que não sabem alguma coisa quando o contexto dá a entender que deveriam saber.
Em um dos vídeos, uma senhora que aparenta ter mais de 60 anos não hesita em responder: “no D”. Ela claramente não entende o contexto, mas reage de forma protocolar. O vídeo, que já acumula 1,6 milhão de visualizações no Instagram, ilustra com deboche um problema sério (1) no mundo da pesquisa científica: dá para confiar em pesquisas de autorrelato?
Esse é o nome técnico da aplicação de questionários. Eles são comuns na ciência por serem fáceis e baratos: basta entrevistar ou enviar um formulário a uma amostra de pessoas.
O método é essencial em áreas como a psiquiatria (já que apenas o paciente sabe como está se sentindo) ou em pesquisas de opinião pública. O problema é quando ele é usado para obter informações que poderiam ser verificadas de outra forma.
Isso rola em algumas pesquisas da área de nutrição, especialmente aquelas que estimam hábitos alimentares da população. Nesse tipo de estudo, o participante responde o que comeu nas últimas 24 horas, ou com que frequência come cada tipo de alimento.
Só que as pessoas tendem a subestimar o que comem – e bastante. Em um experimento que buscava verificar esse viés (2), os participantes relataram ter comido de 12% a 20% menos do que realmente ingeriram nas últimas 24 horas. No relatório de frequência, a subnotificação de calorias chegava a 32%. O número real de calorias foi verificado por um método chamado água duplamente marcada – que, apesar de preciso, é mais difícil de aplicar.
Não é por mal: as pessoas esquecem o que comeram. Quanto mais amplo é o período estudado (por exemplo, se o questionário pede o cardápio da semana em vez do dia), maior a tendência a erros.
As tabelas de informação nutricional, por exemplo, consideram valores diários com base em uma dieta de 2.000 calorias, assumindo que essa seria a média do que um adulto come em um dia. Esse número que estampa rótulos desde os anos 1990 foi obtido por meio de pesquisas de autorrelato. Usando um método mais preciso, porém, sabemos que uma pessoa moderadamente ativa come e gasta de 400 a 1.000 calorias a mais do que isso por dia – um valor que varia muito de acordo com idade e estilo de vida.
O viés do esquecimento rola até em pesquisas de psicologia, em que o autorrelato é necessário. “Isso acontece muito em escalas de depressão. Imagina que o questionário pergunta como você se sentiu nos últimos 15 dias. Mas você esteve mais sensível ontem e hoje, daí você responde em relação a esses dias, e não aos 15”, diz Jan Leonardi, doutor em psicologia clínica pela USP e diretor acadêmico do Instituto de Psicologia Baseada em Evidências. Daí a necessidade de questionários bem-planejados.
O outro viés – talvez o mais importante – é o desejo de aceitação social. Os participantes podem mentir para se enquadrarem em uma conduta que consideram moralmente louvável. Isso está relacionado a um velho conhecido da psicologia, o chamado Efeito Hawthorne: mudamos de comportamento inconscientemente quando sabemos que estamos sendo observados ou avaliados.
Não cola bem, numa pesquisa de nutrição, dizer que você come vários doces e salgadinhos por dia. Diferentes estudos já verificaram que pessoas com obesidade tendem a subnotificar ainda mais seu consumo calórico (3). Isso é um problema principalmente em estudos epidemiológicos, que servem de base para a formulação de políticas públicas de saúde e diretrizes alimentares (4).
Outro grande exemplo são as pesquisas de comportamento sexual. Homens tendem a superestimar a frequência com que usam preservativos e o tamanho do próprio pênis, enquanto abafam o consumo de pornografia e relações com pessoas do mesmo sexo (5). Algo semelhante acontece em estimativas de uso de drogas ilegais, consumo de álcool, comportamento arriscado no trânsito e quaisquer outros temas que podem colocar a pessoa em encrenca com a lei.
A melhor maneira de minimizar o viés nesses casos é aplicar questionários anônimos – mas eles não resolvem tudo. Em pesquisas sobre temas possivelmente controversos, o questionário pode vir acompanhado de perguntas extras, que avaliam o quão preocupado o participante está com a aprovação social. É isso que faz a Escala de Marlowe-Crowne, usada para evitar que as respostas de quem se considera um alecrim dourado interfiram nos resultados.
Entrevistas malpensadas contribuem para uma visão distorcida da realidade. Vide o caso do Dare, um programa americano de conscientização sobre uso de drogas equivalente ao brasileiro Proerd. Os dados oficiais indicam uma taxa de sucesso muito maior do que a real, já que os jovens, ao encarar os questionários ministrados pelas autoridades, mentem sobre o próprio uso (ou intenção de uso) de substâncias. O programa, que pode parecer um sucesso para os organizadores, já foi apontado como ineficaz por diversos estudos (6).
Nossas políticas públicas devem ter base científica. E a ciência precisa de dados confiáveis. As pesquisas de autorrelato são essenciais em áreas em que não há como obter informação de outra forma – na validação de remédios psiquiátricos ou analgésicos, por exemplo. Mas não deveriam ser a única fonte de dados que podem ser coletados diretamente.
É essencial bolar levantamentos com questões claramente redigidas e bem–planejadas, que considerem a existência de vieses e tentem evitá-los na medida do possível. Se as pessoas mentem acerca de seus problemas e inseguranças com sexo, comida ou drogas, é justamente porque essas são áreas delicadas da vida privada, cercadas de tabus, em que muitos de nós precisamos de ajuda. Dados distorcidos pelo constrangimento impedem as autoridades de tomar boas decisões onde mais precisamos delas.
Referências: (1) Artigo Information bias in health research: definition, pitfalls, and adjustment methods; (2) artigo Using intake biomarkers to evaluate the extent of dietary misreporting in a large sample of adults: the OPEN study; (3) artigo O método da água duplamente marcada e pesquisas de ingestão alimentar: um confronto; (4) artigo The Inadmissibility of What We Eat in America and NHANES Dietary Data in Nutrition and Obesity Research and the Scientific Formulation of National Dietary Guidelines; (5) The Influence of Social Desirability on Sexual Behavior Surveys: A Review; (6) Project D.A.R.E. Outcome Effectiveness Revisited.