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Prestei Fuvest aos 25 anos sem estudar. Me saí melhor que na 1ª vez.

Vivência e repertório ajudam mais que apostila de cursinho. Pena que ninguém tem isso aos 18. A USP precisa repensar seu modelo de seleção – e o ensino médio precisa formar seres humanos, e não máquinas de resolver provas.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 29 out 2023, 12h04 - Publicado em 15 jan 2021, 20h06

Já sou formado e CLT, mas resolvi prestar Fuvest de novo. Equipamento: lápis, RG, um litro d’água, uns chocolates desenterrados do fundo do armário, três ou quatro canetas azuis (na Fuvest, são azuis, no Enem, pretas). O celular não vai, o cartão do ônibus também não: o local da prova fica a dois quarteirões de casa.

Vestibular é tipo churrasco. Domingo, alto verão. Você chega pouco após o meio dia, a prova começa uma da tarde. O traseiro suado gruda na cadeira que nem etiqueta. Hora do show. Pense bem antes de se entupir com linguiça e vinagrete – leia-se, química e biologia. Se exagerar, não sobra espaço na memória RAM para a picanha matemática que vem depois. Cada questão de física é uma asinha de frango. Você rói a dita-cuja repetidamente em busca de uma luz, mas não tem carne: só pele e osso.

O jeito é fazer uma varredura atrás das coisas que tomam tempo para valer e deixá-las de lado. Atacar perguntas trabalhosas no começo cansa. E cansado, você erra as fáceis de bobeira no final. Não subestime sua capacidade de fazer besteira depois de quatro horas negociando uma vaga na USP com um pedaço de papel.

Lá para o final do périplo, já preenchendo o gabarito, vi uma questão ainda em branco com uma pintura renascentista – repleta de ninfas bonitinhas, uns bichões mitológicos cabeludos e um jardim com uma pegada greco-romana. Não sei que força maligna me impeliu a assinalar a alternativa que falava em “personagens católicos”. Talvez o calor. 

Eram quatro ventiladores na sala, nenhum apontado para mim. As janelas estavam abertas e o ar condicionado desligado por causa da covid. Era meu primeiro test drive com a tal máscara N95 da 3M. Ela tem uma armação metálica forrada com espuma, que veda o perímetro do nariz e das bochechas. As máscaras de pano caseiras deixam o bafo quente da boca escapar pelo vão em cima – e aí o óculos embaça. Mas essa é o Gordon Banks do oxigênio: nenhuma molécula passa. As lentes ficam limpas, ainda bem. 

Dou uma folheada na prova e encontro o poema do Drummond. Esse é de lei. Talvez seja o cara que mais apareceu na Fuvest, mas nem sempre num soneto tão hermético quanto o de 2021. Começa assim:   

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“Tua memória, pasto de poesia. Tua poesia, pasto dos vulgares.”

Como a pergunta anterior era algo sobre a expansão do agronegócio na Amazônia, minha cabeça logo conjurou a imagem de uma vaquinha malhada chamada Poesia. A silhueta de Drummond, vertical e melancólica, como uma palmeira, conduz o ruminante pela superfície rósea de um cérebro.

A criatura pasta o córtex pré-frontal. Adeus, memória. Eu não sei mais direito o que é um seno nem um cosseno. Meu raciocínio é uma série convergente, tem limite. Eu quero preencher o gabarito como a camada de valência de um gás nobre, mas minha cabeça virou hélio: mais leve que o ar. 

Essa é a hora em que você acha que não dá para passar da primeira fase sem engolir material didático.

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A Fuvest é conteudista até o osso. Fica a impressão de que a prova é sobre algo que não é o mundo. De que 9,8 m/s² não é a gravidade que mantém você preso ao chão. De que o Drummond não era um funcionário público mineiro que sofreu com a 2ª Guerra como a gente sofreu na pandemia. De que você não foi, um dia, um óvulo no útero que fez mitose, e aí mitose, e aí mitose de novo.

Pode até não parecer, mas na verdade a Fuvest é um questionário de 90 dúvidas sobre nós: sobre nossa civilização, sobre as coisas úteis e as bonitas que fizemos, sobre as maneiras como estamos pondo tudo a perder. Ela é parte do mundo, não algo além dele. Foi lembrando disso que consegui marcar 63 pontos na prova. Lá vamos, nós, segunda fase. Para essa, vou ter que estudar. Não tem jeito. 

Não falta quem estude, é claro. Alunos de bons colégios particulares passam boa parte do ensino médio isolado do mundo, maratonando exercícios por tardes a fio sem dar rolê, suar nem ler o jornal. O objetivo não é educar; nunca foi. O objetivo é passar. Mesmo o curso pouco importa: muita gente até queria ser chef de cozinha, roadie de banda punk, azulejista, físico de partículas. Mas vai prestar Direito, mesmo.

Como um exército de zumbis de cursinho, que tem 18 anos sem nenhum sangue, sonho nem América do Sul, vai conseguir? 

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As respostas às vezes estão lá, na TV ou no feed. Em uma pergunta, havia um mapa-múndi com Venezuela e Arábia Saudita ambos pintados. A resposta só pode ter a ver com petróleo, porque a única coisa que conecta países com histórias, regimes políticos e religiões tão diferentes é a extração desse troço. Isso você só aprende seguindo o Guga Chacra no Twitter – não adianta decorar a lista de membros da OPEP.

A gente precisa se emocionar com a situação dos imigrantes venezuelanos que fogem pela Amazônia, ficar indignado com o autoritarismo de Maduro e o assassinato de um jornalista pelo governo saudita, se chocar com a primeira classe nababesca de um avião da Catar ou qualquer outra coisa árabe suntuosa paga com o ouro negro. 

Consegui resolver uma questão sobre circuitos em série e paralelo porque já tinha tentado soldar a fiação de uma guitarra, só de farra, num final de semana. As de português eram gramática hardcore e interpretação de texto, coisas que aprendi escrevendo, na Super, uns 8 mil caracteres por dia.

Quando prestei a Fuvest com 18 anos, praticamente zerei matemática. A decepção foi indescritível: eu passava o dia com a cara enfiada na apostila árida do Anglo. Hoje, com 25, consegui responder cinco questões graças a um livro chamado Alex no País dos Números, que dá vontade de acabar numa sentada só e eu peguei para ler no tédio da pandemia, sem compromisso. 

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O que aconteceu ao longo dos sete anos que separaram minhas duas tentativas de vestibular? Por que os enunciados dessa vez se conectaram com coisas que já existiam em mim? Por que eu comecei a assistir um despenteado na GloboNews, soldar guitarras ou comprar livros sobre matemática no sebo?

Percebi que era óbvio: eu me formei na USP. E lá eu aprendi coisa pra caramba. Não nas aulas, necessariamente. Foi graças àquele matagal com jeitão de Niemeyer no bairro do Butantã que eu meus colegas deixamos de ser estudantes autômatos e nos tornamos seres humanos.

Para quem nasceu em São Paulo e não tem grana, a USP representa tudo. Se você é da periferia, talvez seja o primeiro de sua família a pôr os pés no campus. É uma chance de virar um jogo de 500 anos. Já se você nasceu em São Paulo e tem grana, a universidade pública com frequência é a última chamada para virar gente: sair da bolha antisséptica de um condomínio bege e entender que o mundo é injusto. 

Por fim, há os que não são de São Paulo e chegam aqui pela rodoviária, com um casaco na mão. Compram o primeiro bilhete de metrô num guichê debaixo da garoa. Uma amiga explicou para mim a sensação lendo um trecho de Os Miseráveis, do Vitor Hugo: “Mas eram estudantes, e quem diz estudante diz parisiense: estudar em Paris é nascer em Paris.” A USP não é nenhuma Paris, mas é um lugar em que as pessoas nascem. É uma usina de primeiros empregos, amores, viagens, porres. Todo curso superior é um ritual de passagem.

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Sendo assim, o vestibular parece com churrasco em outro sentido: ele é tipicamente brasileiro. Cria-se uma expectativa surreal em cima de algo que só pode dar tão errado quanto a seleção na Copa de 2014. Temos uma educação básica pífia. Estruturamos a rede de ensino particular em torno de apostilas pré-moldadas que não geram nenhuma gota de entusiasmo pelo mundo. Quem não veio muito curioso de fábrica certamente não terá sua curiosidade despertada ali. 

Na escola pública, por sua vez, a sorte é quando há alguma aula. Quem pode arranjar um emprego de salário mínimo para ajudar a mãe com o aluguel não tem o menor incentivo para dar prioridade aos estudos. Não porque falte a percepção de que estudar é valioso. Mas porque a ciência e a literatura não parecem atraentes. Quem vai pegar na mão dessas pessoas e guiá-las pelo mundo de Beakman? 

A Fuvest quer selecionar jovens que o Brasil é incapaz de formar. Pessoas com conhecimentos abrangentes, engenhosas e bem-informadas, sensíveis a poemas, capazes de conectar saberes distantes. Tem muito moleque com potencial para isso, mas eles só vão manifestar esse potencial com um ensino decente.

A Fuvest não é problemática só porque o desempenho de alguém em quatro horas não reflete a dedicação de uma vida. Mas também porque ela quer gente com cabeça de quem já fez USP e teve um emprego. Aí, não dá. Se o Brasil quer que seus jovens façam algo por ele, ele precisa, antes, fazer algo por seus jovens. Algo que não seja matá-los a tiros na favela ou deixar a inflação do arroz bater em Saturno ou ignorar uma pandemia. 

A expansão das universidades públicas federais há uma década foi um passo importante nessa direção. Mas agora estamos regredindo de novo. A vaquinha do Drummond ainda vai mascar nosso cérebro por muito tempo. Pelo menos até alguém em Brasília se tocar que um país pra valer é feito de aviões da Embraer, e não plantações de soja.

P.S. Para quem chegou ao final curioso: me formei em Jornalismo, agora estou prestando Física. Não sirvo para o crossfit do corpo, achei melhor malhar o cérebro. 

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