Comida química
Permitimos substâncias proibidas na Europa e importamos produtos banidos pela China. Somos campeões no consumo de defensivos agrícolas condenados em outros países. Por que o Brasil usa tanto agrotóxico?
Lydia Cintra
Endosulfan é um agrotóxico usado em lavouras de café e soja que causa distúrbios hormonais e aumenta o risco de câncer. Foi proibido na Alemanha em 1991 e no resto da Europa pouco depois. No Brasil, o endosulfan foi totalmente banido somente em julho de 2013.
Pelos ares, um problema parecido. A pulverização feita por aviões é regulamentada pelo Ministério da Agricultura, mas, nas fazendas europeias, jogar agrotóxico do céu já faz parte do passado desde 2009. Estudos mostram que, mesmo seguindo todas as recomendações de temperatura e ventos, somente 32% das substâncias despejadas do céu permanecem nas plantas. O restante contamina solo, água e áreas vizinhas às plantações.
Por mais que você faça esforço para acordar cedo e escolher as mais vistosas verduras e frutas da feira orgânica do bairro, os agrotóxicos (ou defensivos agrícolas, como prefere a indústria do setor) estão por toda a parte no Brasil. Resultado de uma política que incentivou o país a se tornar um dos maiores fornecedores de produtos agrícolas do mundo, os químicos encontram no Brasil terreno fértil para se pulverizar. O país é um dos campeões no consumo de agrotóxicos, o que, segundo a indústria química, não passa de um efeito colateral de um objetivo nobre: aumentar a produtividade das lavouras brasileiras. O setor da aviação agrícola argumenta, por exemplo, que suprimir as baforadas de agrotóxicos reduziria em até 40% a produtividade. Ninguém discorda dos benefícios do agronegócio eficiente, que traz bons resultados para o Brasil nas exportações e assegura (ou pelo menos deveria assegurar) preços mais baixos nas gôndolas de supermercados. Mas, vistas com lupa, as regras brasileiras sobre o uso de químicos nas lavouras parecem estagnadas no tempo. Um dossiê de 2012 da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) aponta que, dos 50 produtos mais utilizados nas lavouras brasileiras, 22 são proibidos na União Europeia, o que faz com que o país seja o maior consumidor de agrotóxicos já banidos em outros locais do mundo, de acordo com a entidade. Outro documento, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mostra que grande parte do estoque de produtos organofosforados banidos na China em 2007 tem sido enviados ao Brasil.
A consequência: em 2011, uma pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz comprovou que até mesmo o leite materno pode conter resíduos de agrotóxicos. O estudo coletou amostras em mulheres do município de Lucas do Rio Verde (MT), um dos maiores produtores de soja do país. Em 100% delas foi encontrado ao menos um tipo de princípio ativo. Em algumas, até seis tipos. E em 70% das amostras o endosulfan estava presente. Hoje, é difícil dissociar safras recordes e indústria química, responsável pela fabricação de herbicidas, inseticidas e fungicidas, que matam e controlam a disseminação de plantas daninhas, insetos e fungos nas plantações. Só em 2012, 185 milhões de toneladas de grãos foram colhidos no Brasil. Para chegar lá, agricultores têm uma infinidade de opções tecnológicas para evitar perdas de produção: cerca de 1.640 agrotóxicos estão registrados no país.
Incentivo público
Para entender como chegamos a uma posição de destaque no ranking químico, é preciso retroceder pelo menos até 1975, quando o regime militar incentivou o uso de agrotóxicos com o Plano Nacional de Defensivos Agrícolas, que condicionava a obtenção de crédito rural à aplicação de pesticidas. “Foi também nessa época que apareceram as primeiras denúncias de contaminação de alimentos e intoxicação de trabalhadores rurais”, explica o engenheiro agrônomo e consultor ambiental Walter Lazzarini, envolvido na formulação da Lei dos Agrotóxicos brasileira, em 1989, que estabeleceu regras mais rigorosas para a concessão de registros de novos produtos. A lei vigora até hoje, com algumas mudanças no texto original. O gargalo, porém, está no cumprimento da legislação. “O país investe menos do que deveria em fiscalização e monitoramento”, comenta Decio Zylbersztajn, professor e criador do Centro de Conhecimento em Agronegócios da FEA/USP. No Brasil, o processo de registro de novos produtos passa por três ministérios (Agricultura, Meio Ambiente e Saúde), mas o número de pessoas que trabalham com agrotóxicos nesses órgãos é quase 20 vezes menor que a equipe dedicada ao assunto nos EUA, onde cerca de 850 pessoas atuam na área. Aqui, os fabricantes têm isenção de alguns impostos, e o preço de registro de novos agrotóxicos é de no máximo US$ 1 mil. Nos EUA, custa até US$ 630 mil. Outro ponto polêmico: a legislação brasileira não prevê reavaliações periódicas obrigatórias dos agrotóxicos registrados. Nos EUA, os produtos são reavaliados a cada 15 anos (e cada reavaliação custa US$ 150 mil para para o fabricante), e na União Europeia, a cada dez anos. “O avanço da ciência permite identificar efeitos nocivos não observados no processo de registro e, com base em uma reavaliação, medidas podem ser tomadas para mitigar esses efeitos”, defende Robson Barizon, pesquisador de Dinâmica de Pesticidas no Ambiente da Embrapa.
Em 2008, a Anvisa elegeu 14 princípios ativos para reavaliação. Apenas cinco foram concluídas até agora. “O processo de reavaliação é um trabalho científico e por isso o embasamento para a decisão final precisa estar muito bem sustentado”, explicou a agência por meio de sua assessoria de imprensa. “A Anvisa teve algumas dificuldades por causa da judicialização da questão por parte de empresas que tentaram impedir as reavaliações.” Um dos defensivos ainda em análise é o glifosato, um dos herbicidas mais vendidos no mundo, introduzido no mercado pela Monsanto nos anos 70 sob o rótulo Roundup. No Brasil, 55 produtos à base de glifosato são autorizados para mais de 20 culturas, como feijão, arroz e banana.
Outra política brasileira que gera protestos: uma instrução aprovada em 2010 permite que os fabricantes usem os resultados de seus estudos para plantas com características botânicas semelhantes. Por exemplo: um agrotóxico autorizado para o alface poderá ser registrado para outras 10 verduras, como o agrião e a rúcula. “Esse cenário exige menos recursos e estrutura laboratorial das empresas”, diz Barizon. A decisão, claro, não agrada a todos. “A composição dos alimentos é diferente. A população não pode correr o risco de ser cobaia de produtos aprovados por semelhança”, diz o consultor ambiental Walter Lazzarini. Por outro lado, a indústria critica o tempo de espera para novos registros, que demora em média 33 meses. “O sistema regulatório para agroquímicos encontra-se em uma situação inaceitável. É muito truncado. São três agências e cada uma tem o seu tempo para avaliar”, reclama Geraldo Berger, diretor de Regulamentação da Monsanto.
Precisamos deles?
Os agrotóxicos se popularizaram a partir da Segunda Guerra Mundial, quando houve investimentos massivos em armas químicas. Muitos dos produtos desenvolvidos para conflitos foram depois destinados à agricultura. Um dos exemplos mais emblemáticos foi o agente laranja, usado pelos EUA no Vietnã para arrancar as folhagens das árvores e aumentar o campo de visão dos soldados norte-americanos. Um dos seus princípios ativos (o 2,4-D), ainda está autorizado no Brasil para arroz, cevada, café, soja e outros. A proliferação química começou a ser contida nos anos 60, quando a bióloga norteamericana Rachel Carson denunciou que inseticidas organoclorados como o DDT possuem efeitos nocivos à saúde e à natureza. Seus estudos originaram o livro Primavera Silenciosa, um marco na crítica aos químicos. Nele, Rachel relatou que o DDT foi encontrado no fígado de aves e peixes de todas as ilhas oceânicas do planeta. A repercussão da obra levou à criação da Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) em 1970 e culminou na proibição da substância no país. Aqui, o DDT saiu do mercado em duas etapas: em 1985, quando foi proibido no campo, e em 2009, ano do banimento definitivo.
Enquanto isso, a demanda por tóxicos crescia junto com a necessidade de alimentar os bilhões pelo mundo. Cultivar uma única espécie em um terreno onde dezenas de plantas costumavam conviver abre espaço para explosões de “pragas”, isto é, uma superpopulação incentivada pela ausência de predadores. “A homogeneização é a pior maneira de aproveitar espaços, sol e água. Essas áreas exigem aplicações massivas de químicos”, afirma Leonardo Melgarejo, agrônomo do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Nos últimos anos, produtores brasileiros ainda tiveram que enfrentar a aparição de pragas inesperadas, de difícil controle.
O fungo da ferrugem asiática, por exemplo, gerou perdas que chegaram a 40 milhões de sacas de soja na safra 2012/2013, segundo a Associação Nacional de Defesa Vegetal. Mas, se não houvesse controle, o Brasil dificilmente estaria na segunda colocação da produção mundial de soja. “Sem essa indústria, não só Brasil, mas o mundo teria grande dificuldade de suprir alimento para a população”, defende o professor Zylbersztajn. Para ele, cumprir as regras de segurança é mais importante do que produzir apenas alimentos orgânicos, por exemplo. “O agrotóxico vai deixar resíduo? Sim. Assim como quando você toma remédios acaba tendo efeito colateral. Mas qual é a alternativa? Não tem alternativa. É o melhor que a gente consegue fazer”, conclui. A indústria argumenta que a inevitável queda de produtividade torna a alimentação 100% orgânica inviável. “Os agroquímicos são necessários para manter o nível de produção que temos no Brasil. A maior sustentabilidade que podemos proporcionar para a agricultura é produzir mais com menos”, diz Berger, da Monsanto. Há quem discorde. Para Leonardo Melgarejo, a policultura é mais produtiva e fornece alimentos mais saudáveis. “Os custos de largas áreas sustentadas por agroquímicos não justificam os resultados. Parte do esforço dirigido para a manutenção do atual modelo deve ser redirecionada para a construção de outro, mais compatível com as necessidades da maioria.” Em 16 municípios do Rio Grande do Sul, por exemplo, 400 famílias participam de um projeto de cultivo de arroz sem agrotóxicos. O rendimento da produção, cerca de 3,75 toneladas por hectare, é menos da metade de uma lavoura tradicional, tratada com químicos. “Eles dominam uma tecnologia que concorre com lavouras modernas, praticam custos inferiores e não poluem as águas. Se esses resultados foram obtidos sem apoio intensivo de políticas públicas, o que podemos esperar na presença de crédito, pesquisa e assistência especializada?”, pergunta Melgarejo.
As respostas podem estar com o consumidor, que decide o que vai comer.
Cinco casos de químicos extremamente tóxicos que o Brasil demorou (ou demora) para banir:
Endosulfan
Banido no Brasil em julho de 2013, era utilizado na produção de cana-de-açúcar, soja, algodão e café. Está relacionado a doenças e distúrbios no sistema nervoso, pode provocar câncer e até mutações genéticas. Havia sido proibido na Alemanha em 1991 e, logo depois, em toda a União Europeia .
Metamidofós
Está em tomate, batata, feijão e soja e já foi proibido nos seguintes lugares: Paquistão, Indonésia, Kuwait, Japão, Costa do Marfim, China, Europa e, só em 2012, no Brasil. Provoca doenças endócrinas, reprodutivas e prejudica o desenvolvimento fetal na gravidez.
Paraquate
Presente nas lavouras de banana, arroz e muitos outros, pode provocar morte em 48 horas por falência dos órgãos se for ingerido em excesso. Atinge os sistemas neurológico e reprodutor. Proibido na União Europeia, ainda é autorizado no Brasil. Está em reavaliação, mas o processo não foi concluído.
Parationa metílica
Da cebola ao arroz com feijão, passando por batata, alho, milho e trigo: tudo tem a substância que provoca problemas cardiovasculares, respiratórios, câncer e outros. Proibido no Japão, China e Europa. Passa por reavaliação aqui e segue livre.
Forato
Usado em milho, amendoim, feijão e café, está relacionado a problemas neurológicos e pode provocar tremores, convulsões e hemorragias. Já foi banido nos EUA e União Europeia, mas pode ser usado no Brasil. A Anvisa está reavaliando, mas não concluiu o processo.
A Anvisa analisou sete alimentos em 2012 para determinar seus níveis de intoxicação. O percentual revela quantas amostras continham algum tipo de irregularidade:
59% – Morango
42% – Pepino
41% – Abacaxi
33% – Cenoura
28% – Laranja
A Anvisa considera que existem três tipos de irregularidades nos alimentos. As porcentagens finais são a junção das três:
Alimentos que apresentam agrotóxicos não autorizados.
Alimentos que apresentam ingredientes autorizados, mas acima dos limites máximos permitidos.
Alimentos que apresentam as duas coisas juntas: agrotóxicos não autorizados e limites de resíduos acima do permitido.