Como a dengue chegou ao Brasil – e qual é o futuro da doença
2024 deve se tornar o ano com o maior número de casos de dengue na história do país. Mas a vacina disponível pode ajudar a reduzir as mortes. Entenda como o mosquito se apegou aos humanos ao longo da história e quais são as perspectivas para o combate ao Aedes.
Jurassic Park quase acertou. No filme dirigido por Steven Spielberg, cientistas encontram um mosquito perfeitamente preservado em âmbar por milhões de anos. O inseto carrega o sangue de sua última presa: um dinossauro. A partir do DNA do grandalhão, a equipe traz à vida diversas espécies que passam a habitar o parque dos dinossauros.
Não vamos entrar no mérito da desextinção – essa parte é pura ficção mesmo. A imprecisão científica ali foi ainda mais boba: o inseto retratado no filme, Toxorhynchites rutilus, é uma das poucas espécies de mosquitos que não se alimenta de sangue. Só néctar de plantas.
Qualquer outra espécie deixaria o filme (um pouco) mais realista, já que os dinossauros de fato eram picados por mosquitos. O espécime mais antigo conhecido, preservado em âmbar, data de 130 milhões de anos atrás (1) – e os dinos só saíram de cena há 66 milhões de anos.
Em comparação a outras espécies, os mosquitos permaneceram praticamente inalterados durante milhões de anos. Isso mostra que a fórmula deu certo: são um exemplo de sucesso evolutivo. O problema é que esses insetos se associaram a agentes infecciosos – como protozoários, que causam a malária, e vírus – entre eles, os responsáveis por dengue, zika
e chikungunya.
Neste momento, o Brasil passa pela maior epidemia de dengue em todos os tempos. O Ministério da Saúde estima que o país chegue a 4,2 milhões de casos em 2024 – até a publicação deste texto, eram 1,2 milhão. Para dar uma ideia, o pior ano da série histórica foi 2015, com 1,7 milhão de casos.
Já o ano mais letal foi 2023, com 1.094 mortes registradas por dengue. Podemos ultrapassar esse número em 2024. Mas agora temos um aliado: em dezembro de 2023, o Brasil se tornou o primeiro país no mundo a disponibilizar uma vacina contra a dengue no sistema público de saúde.
Veja como uma relação “simbiótica” entre o Homo sapiens e o Aedes aegypti criou epidemias de dengue ao longo da história. E por que ficou cada vez mais difícil combater a doença.
Mosquito de estimação
Apenas as fêmeas do Aedes aegypti picam humanos. Elas usam as proteínas presentes no nosso sangue para amadurecer os ovos dentro do organismo. Quatro dias depois da picada, os ovos estão prontos para sair. E a água parada é o “ninho” que a mãe precisa encontrar para botá-los. O macho é o vegano da relação: se contenta apenas com frutas.
Só que nem todas as fêmeas preferem humanos, especificamente. Populações de A. aegypti que vivem nas savanas africanas, por exemplo, se alimentam de outros animais e não mostram interesse especial em nós. Já os mosquitos que vivem nos ambientes urbanos ao redor do mundo se especializaram em seguir nosso cheiro.
Podemos dizer que os humanos “domesticaram” populações de mosquito involuntariamente quando começaram a se organizar de forma mais complexa e (principalmente) armazenar grandes quantidades de água. As primeiras civilizações forneciam um estoque quase inesgotável de sangue e “ninhos” para as fêmeas – e isso fez com que elas se especializassem em nós.
Estudos de 2020 e 2023 sugerem uma hipótese de como isso aconteceu. Sabemos que o Aedes aegypti é originário da África, então os pesquisadores coletaram populações especialistas (que preferem humanos) e generalistas (que picam qualquer animal) por todo o continente. As especialistas se concentram no norte da África, mostrando que a aproximação com humanos provavelmente rolou por ali.
Comparando as mutações genéticas dessas populações, os pesquisadores concluíram que a especialização em humanos ocorreu por volta de cinco mil anos atrás. Nessa época, terminava o “período úmido africano”: por conta de mudanças cíclicas na órbita da Terra, o norte da África tem períodos alternados de umidade (caracterizado por alguma presença de lagos e florestas) e completamente desérticos. Estamos na fase mais seca, e conhecemos a região hoje como deserto do Saara.
Com a mudança de clima, as populações de mosquitos que viviam ali não encontravam mais animais para se alimentar e água para botar ovos. Daí se aproximaram das civilizações humanas, como as que viviam no rio Nilo. Não à toa, o nome Aedes aegypti faz referência ao Egito.
Por meio de registros históricos, sabemos que o espalhamento do mosquito pelo mundo só ocorreu no século 17 – em especial, com o tráfico de escravizados partindo da África para as Américas. O A. aegypti picava a tripulação e colocava os ovos nos barris de água dos navios.
A América do Sul e a Central proporcionaram o ambiente perfeito para o mosquito. A temperatura ideal para o desenvolvimento do Aedes aegypti é de 22ºC a 32ºC (4). Some isso à abundância de chuvas, e dá para dizer que os bichinhos encontraram um continente para chamar de seu.
A erradicação – e a volta da doença
Os mosquitos sempre foram inconvenientes, mas não eram vistos como um problema de saúde pública até o início do século 20. Nos anos 1880, surgiu a hipótese de que o mosquito transmitia o “veneno” da febre amarela – outra doença que uma picada de Aedes pode ocasionar. Na década seguinte, com a descoberta dos vírus, a febre amarela se tornou a primeira doença comprovadamente viral da história. A dengue
foi a segunda.
Os vírus da febre amarela e da dengue inauguraram o conceito de arboviroses – doenças virais transmitidas por artrópodes, como o mosquito. Os vírus se multiplicam no organismo do Aedes aegypti (algo chamado período de incubação extrínseco) e migram para as glândulas salivares do animal. De lá, vão para a corrente sanguínea humana por meio da picada.
O mosquito passou a ser visto como uma ameaça por conta da febre amarela. Faz sentido: apesar do quadro de infecção desconfortável, as pessoas geralmente sobrevivem à dengue. Já a febre amarela é muito mais grave, com letalidade em torno de 40%.
Durante a primeira metade do século 20, o Brasil fez uma grande campanha para eliminar o Aedes aegypti, encabeçada inicialmente pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. Apesar das boas intenções, os métodos eram questionáveis: as brigadas sanitaristas entravam nas casas à força para eliminar qualquer foco do mosquito.
Nos anos 1940, um pesticida barato e eficaz chamado DDT surgiu como uma bala de prata para eliminar o inseto. Nas décadas seguintes, porém, descobriu-se que o composto é cancerígeno e maléfico para outras espécies da flora e fauna. Hoje, ele é proibido em diversos países, incluindo o Brasil.
As medidas deram certo na época, e atingiram algo que seria impensável hoje: erradicaram o Aedes aegypti no país. Com o financiamento da Fundação Rockefeller e campanha da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), o Brasil e outros países da América se engajaram no combate à febre amarela. Em 1958, recebemos um certificado atestando a eliminação do mosquito em território nacional.
Peru, Bolívia, Argentina e outros países latinos fizeram o mesmo. Só que a campanha da OPAS não foi bem sucedida em todos os lugares. Guiana, Venezuela, Cuba, República Dominicana, Colômbia e a Flórida, nos Estados Unidos, nunca erradicaram o Aedes aegypti (5). Era só uma questão de tempo até que o vetor voltasse ao Brasil.
O mosquito foi encontrado novamente em 1967, no Pará, mas ainda estava relativamente contido. O problema só apareceu mesmo em 1981, quando o primeiro caso de dengue hemorrágica surgiu em Boa Vista, Roraima. O estado passou por uma epidemia de dengue tipo 1 e tipo 4.
O vírus da dengue possui quatro sorotipos distintos: DEN-1, DEN-2, DEN-3 e DEN-4. O que os diferencia são os antígenos presentes na superfície do patógeno. A pessoa que pega dengue tipo 1 desenvolve imunidade para esse sorotipo para o resto da vida. Mas se ela entrar em contato com o tipo 2, por exemplo, seu sistema imunológico não reconhecerá os antígenos presentes ali – e a doença se instala novamente. Via de regra, uma pessoa pode contrair dengue quatro vezes ao longo da vida.
Isso explica o caráter cíclico da doença. As epidemias de dengue ocorrem a cada três a cinco anos. Se em determinado ano há circulação do sorotipo 1, a população vai desenvolvendo imunidade, com menos indivíduos suscetíveis à doença. A poeira abaixa. Só quando um outro sorotipo começa a circular, o que pode levar alguns anos, a população se infecta novamente em massa (a vigilância epidemiológica do Ministério da Saúde se encarrega de detectar os DENs). Nesse meio tempo, nasce uma nova geração de crianças suscetíveis ao tipo 1, e começa tudo de novo.
A dengue hemorrágica também está relacionada aos diferentes sorotipos. Embora possa acontecer na primeira infecção por dengue, o quadro grave é mais comum na reinfecção. “Os anticorpos já estão lá – porque foram criados na primeira exposição – mas eles podem gerar uma reação cruzada com outros anticorpos não específicos [que funcionam para diferentes DENs]”, diz Fernanda Boulos, diretora médica do Instituto Butantan. “Na segunda infecção, eles já partem de um nível alto, e a hipótese é que esse boost de anticorpos esteja associado à manifestação grave.” A letalidade da dengue clássica é menos de 1%. Já a dengue hemorrágica chega a 20%, se não for tratada.
Aedes hackeado
Há anos tentamos combater a dengue focando na eliminação do mosquito (basicamente, não deixar água parada). Essas ações são fundamentais, claro, mas a busca por uma solução definitiva demanda focar no vírus, não apenas no vetor.
O World Mosquito Program, por exemplo, faz isso infectando o mosquito com a bactéria Wolbachia. Esse é um micróbio que ocorre naturalmente em metade dos insetos, mas não no A. aegypti. No entanto, se o mosquito for infectado artificialmente com a bactéria, os vírus da dengue, zika, chikungunya e febre amarela não conseguem se desenvolver dentro dele. A ideia é soltar mosquitos infectados com Wolbachia e esperar que eles se reproduzam com os da cidade. Dessa forma, aumenta a porcentagem de A. aegypti que não transmitem doenças. O experimento começou em Niterói (RJ), em 2015. Desde então, os casos de dengue na cidade diminuem a cada ano.
Há também os mosquitos geneticamente modificados feitos pela empresa Oxitec. A alteração no gene tTAV faz com que as fêmeas (que são as únicas que picam) morram em fase larval. Os Aedes aegypti transgênicos machos se reproduzem com as fêmeas selvagens, resultando numa prole toda masculina.
Ambas são soluções de longo prazo. A ferramenta que temos em mãos para combater a epidemia atual são as vacinas. Existem duas aprovadas no Brasil: Dengvaxia, do laboratório francês Sanofi-Pasteur, e QDenga, do japonês Takeda.
A Dengvaxia foi registrada em 2015, e só é indicada para pessoas que já tiveram dengue antes, e que moram em áreas endêmicas. Os estudos clínicos mostraram que pacientes soronegativos que tomaram a vacina e depois contraíram dengue tinham mais chances de apresentar quadros graves. É útil, mas tem condições limitantes – e não está disponível no sistema público.
A maior parte das fichas está apostada na QDenga. Ela previne 63% dos casos de dengue sintomáticos, e 85% das internações. Além disso, pode ser aplicada em qualquer pessoa, não importando se ela já teve a doença ou não. A vacina começou a ser distribuída pelo SUS em fevereiro deste ano, com o público alvo sendo crianças de 10 a 14 anos: essa é a faixa etária com o maior número de hospitalizações por dengue. O imunizante é aplicado em duas doses, com três meses de separação entre elas.
Em 2025, é provável que o Brasil tenha uma terceira vacina – dessa vez, desenvolvida aqui mesmo. No início deste ano, o Instituto Butantan publicou os resultados do último ensaio clínico de seu imunizante contra a dengue (6). 16.235 pessoas entre dois e 59 anos participaram do estudo. A vacina apresentou 79,6% de eficácia geral.
Como os outros imunizantes, ele é feito com vírus atenuado e foi desenvolvido para proteger contra todos os tipos de dengue. A grande vantagem dessa vacina em relação às outras é que ela é aplicada em apenas uma dose. O dossiê para a aprovação deve ser submetido à Anvisa até o final deste ano.
E não é só o Brasil que deveria estar de olho nesses imunizantes. Espanha, França e Itália registraram 128 casos de dengue em 2023. Pouco, comparado aos nossos números – mas um salto de 2022, que teve 71 casos, e 2021, com apenas duas notificações da doença. Até poucos anos atrás, a Europa só registrava casos importados de outros países. Agora, já existe transmissão local.
A dengue não costumava afetar as zonas de clima ameno. O aumento das temperaturas e chuvas na Europa proporcionaram um novo ambiente não só para a proliferação do Aedes aegypti, mas também a do Aedes albopictus, responsável por boa parte das infecções por dengue no sudeste asiático.
É uma corrida contra o tempo – mas temos ferramentas para impedir que a dengue se torne um problema maior. Enquanto os novos métodos e imunizantes não chegam, contente-se com o que você já sabe: abuse do repelente e elimine possíveis criadouros. Seu corpo agradece – mas o mosquito não.
Referências: (1) Artigo “The earliest fossil mosquito”; (2) Artigo “Climate and Urbanization Drive Mosquito Preference for Humans”; (3) Artigo “Dating the origin and spread of specialization on human hosts in Aedes aegypti mosquitoes”; (4) Artigo “Efeitos da temperatura no ciclo de vida, exigências térmicas e estimativas do número de gerações anuais de Aedes aegypti (Diptera, Culicidae)”; (5) Artigo “Leaking Containers: Success and Failure in Controlling the Mosquito Aedes aegypti in Brazil”; (6) Artigo “Live, Attenuated, Tetravalent Butantan–Dengue Vaccine in Children and Adults”
Fontes: Gabriel Lopes, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz em história da ciência e da saúde; Ricardo Lourenço de Oliveira, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz em mosquitos e arboviroses; Francisco Chiaravalloti, professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP; Livro “O mosquito: A incrível história do maior predador da humanidade”.