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Mas, e aí? CrossFit machuca mesmo?

Nas próximas linhas, vamos deixar de fora o fanatismo, dos dois lados, e focar no que interessa: o que a ciência e a prática mostram

Por Bruno Romano
18 dez 2018, 20h14

Falar de lesões no esporte é entrar em um terreno pantanoso. Eis um legítimo quebra-cabeça que envolve, no mínimo, três aspectos: o nível físico e técnico atual do praticante, suas condições gerais de saúde e o ambiente em que está inserido. E, nesse terreno, o CrossFit, pela alta intensidade dos treinos, é frequentemente associado a lesões recorrentes. Mas será que a fama procede?

Como em qualquer esporte com movimentos que exigem boa técnica e, em muitos casos, cargas pesadas, as pessoas se machucam, sim. Mas essas lesões geralmente estão associadas ao imediatismo impregnado em nossa sociedade. “As pessoas querem receitas milagrosas para entrar em forma, um erro gravíssimo; e a lesão vem no meio desse caminho”, diz José Carlos Farah, professor do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (USP).

No caso do CrossFit, a coisa fica mais perigosa já que a intensidade é algo incentivado diariamente. Para você ter uma ideia, um personagem famoso no universo da modalidade é o Pukie, The Clown (cujo nome vem do inglês puke = vomitar), um palhaço “trincado” de músculos que costuma ser visto segurando um balde de vômito. Outo é o Uncle Rhabo, uma referência à rabdomiólise, condição extrema causada por lesões musculares, que pode causar danos aos rins e, em casos mais graves, até ser fatal.

Quando falamos de intensidade (alta e/ou frequente), vale olhar com mais atenção para o coração. “Tudo relacionado a essa área ainda é bastante inconclusivo e controverso”, atesta o fisiologista e geneticista Luiz Rocha, professor da Universidade Católica de Brasília. Há tês anos, ele mesmo começou a aliar com a parte acadêmica a prática de CrossFit e traz como um dos destaques da sua linha de trabalho a avaliação do efeito danoso em células cardíacas no longo prazo.

“Para quem vive do esporte, a alta intensidade após longos períodos parece ser danosa a essas células, chegando a se equiparar com um infarto”, diz. “Para o atleta amador, isso deixa de ser uma regra, e o efeito após muitos anos é menor, mas existe”, completa Luiz, que recomenda acompanhamento de especialistas em saúde em qualquer tipo de atividade.

Mas então como mensurar quantos benefícios uma atividade intensa gera ao melhorar demais hábitos, e o quanto um estímulo extra tira do tempo de vida? Eis um campo vasto e cheio de armadilhas.

Para o dono de box e treinador certificado CrossFit Luiz Silveira, a culpa no caso de lesões é um tema bilateral. “Tanto o cliente como o coach podem ter sua parcela”, diz. “Em espaços com alunos demais, o que considero um erro, não dá para controlar tudo, mas muitas vezes é o praticante quem exagera na empolgação e ultrapassa os limites”, defende.

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Na BlackCat, onde dá suas aulas em São Paulo, Luiz também alerta os iniciados para outro tipo comum de cilada: “Eventos competitivos acabam mesmo servindo de inspiração, o que pode ser bom, mas é uma falha grave do coach já tratar logo de cara seus alunos como atletas”.

Fábrica de treinadores

Os profissionais habilitados a ensinar CrossFit pelo mundo (espalhados em mais de 14 mil boxes) passam por um treinamento oficial. O módulo inicial, ou Nível I, dura apenas um fim de semana e já permite lecionar.

É unânime entre pelo menos duas dezenas de donos de boxes e coaches com quem a SUPER conversou que isso, por si só, é muito pouco para passar toda a qualidade do método adiante. Na enorme maioria dos boxes com os quais entramos em contato, também não se exige nenhum tipo de exame médico prévio antes de começar a suar para valer.

É óbvio que a CrossFit não quer espalhar gente despreparada por aí, tampouco manchar o nome da prática. Mas esse risco existe e é bem real. O que explica um fenômeno recente nos EUA: após o país bater a marca dos cerca de 8 mil boxes, alguns começaram a fechar.

Dentre os possíveis motivos estão a má qualidade de serviço ou experiência prática (inclusive, se houver denúncia de irregularidade, há desfiliação), concorrência e má administração de um negócio.

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A ex-corredora de elite norte-americana e especialista em fitness Erin Simmons representa bem um dos extremos desse ringue. “Cada box tenta rebater a má reputação dizendo que é diferente, e que são os outros lugares que fazem as coisas erradas”, proclamou em artigo publicado no Huffington Post e em seu site pessoal. “Para mim, seguir o padrão sempre intenso e aleatório do CrossFit não é seguro, e você pode colocar sua saúde em perigo”, segue.

Essa ala que não dá nenhuma trégua para um novo método de treino como o CrossFit também alerta para a diferença entre aleatoriedade (segundo os críticos, maléfica, evidenciando a falta de um preparo individualizado) e variação (essa sim, unanimemente benéfica).

O conta-ataque

O quartel-general da CrossFit, recheado de executivos com histórico militar, tem sido extremamente duro nesse ponto. E isso inclui até processos judiciais conta cientistas que divulgaram dados ligados à lesão na prática, além de contatos telefônicos diretos com pesquisadores pedindo maiores explicações.

Alguns desdobramentos dos casos estão publicados na íntegra no site oficial CrossFit.com. Em um caso icônico, Jeff Glassman, pai de Greg Glassman, o fundador do método, escreveu 92 páginas rebatendo um estudo que focou na prática do CrossFit por militares. Entre seus argumentos, ele atribui o aumento de lesões, em parte, devido à fadiga criada pela “guerra conta o terror”.

A empresa realmente não interfere nas escolhas e no dia a dia de cada box. Mas, nesse livre mercado, não há como negar um espaço fértil para emboscadas. Os próprios mandatários da CrossFit já falaram em “pequenos experimentos ao redor do mundo”, referindo-se aos afiliados. Mas cada espaço, se confirmadas más práticas, pode perder sua filiação. Só que, nesse mundo de vencedores e perdedores, nenhum aluno quer acabar dando bobeira no lado ruim da história – o preço disso pode ser, sim, uma lesão.

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De volta ao laboratório

Por tás de toda essa discussão, o que concluem exatamente os estudos até aqui? Para responder a essa pergunta, o departamento de ortopedia e traumatologia (FM-MOT) da Universidade de São Paulo (USP) reuniu 65 publicações, inclusive as “oficiais” lançadas via CrossFit Journal.

Publicado em fevereiro de 2018, o estudo da USP mergulhou fundo revisando dados de composição corporal, aspectos e comportamento psicossocial, vida e saúde, além de risco de lesão musculoesquelética. Esse último tópico foi tema específico de apenas seis trabalhos.

Vamos aos números: 74% dos 132 participantes de um estudo de 2013 publicado no The Journal of Stength & Conditoning Research apresentaram ao menos uma lesão, as mais comuns nos ombros e nas costas, seguidos por braços e cotovelos. Vale dizer que o índice foi baseado em formulários online, método que pode ou não ser preciso na identificação de lesões de uma determinada modalidade.

Demais trabalhos na mesma linha mostram que o dado ficou mesmo fora da curva: o Orthopaedic Journal of Sports Medicine publicou uma pesquisa em 2014, unindo questões online com medições em campo, cravando 19% de lesões musculoesqueléticas em 381 praticantes; outro estudo de 2016 mostra 24% de 187 entrevistados com contusões específicas nos ombros, objeto de análise do trabalho.

Na mesma revisão da USP, eles citam outro medidor bastante comum nessa área e afirmam que há uma variação de 1,9 a 3,1 no risco de lesão a cada mil horas praticadas. Isso é considerado uma incidência baixa.

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A realidade é que lesões são sempre multifatoriais e os métodos e amostras dos estudos, nem sempre tão precisos. Os números costumam ser traiçoeiros e podem não ser sinônimo de realidade. E as discussões seguem quentes, ao vivo ou na internet.

O consenso está com diversos especialistas da área de saúde, todos familiares com os métodos e a linguagem do CrossFit: ainda que variar diariamente os esforços possa ser altamente efetivo, muitos dos exercícios mais exigentes pedem extremo cuidado. Em outas palavras, é o mesmo que brincar com fogo.

Segundo o quiroprata norte-americano Robert Hayden, existe até uma brincadeira interna de que o CrossFit acabou sendo bom para a profissão: com a grande incidência de lesões, aumentou a procura por tratamento. Mas, na prática, ele tem percebido muitas predisposições anteriores à contusão, sobretudo em ligamentos, tendões e discos da coluna. “Se você possui algum problema nessas áreas, a sequência de exercícios do CrossFit vai trazê-lo à tona”, diz Robert.

Não há como cravar o CrossFit como uma atividade mais perigosa do que as outas por si só, defende o quiroprata. Ele ainda observa um aspecto bastante lembrado pelos adoradores do método: que a capacidade de tirar as pessoas do marasmo tem de ser levada em conta na hora de balancear heróis e vilões dessa história.

O que nos traz de volta à questão original. Mesmo que seja difícil manter a boa técnica, respeitar períodos de recuperação e seus limites nesse ambiente naturalmente competitivo, eis aí o caminho para evoluir de forma progressiva. É possível. E depende muito de cada um.

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