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A estranha razão biológica para existirem números iguais de machos e fêmeas

Parece óbvio que populações de seres vivos sejam 50% meninos e 50% meninas. Mas esse não é o arranjo mais eficaz: ele é consequência inevitável de uma peculiaridade reprodutiva.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
9 jun 2024, 14h00

Imagine que você é o responsável pelo setor de trombas da arca de Noé, e seu objetivo seja garantir, após o dilúvio, o nascimento do maior número possível de filhotinhos de elefante, de maneira a preservá-los.

O espaço disponível na embarcação, graças aos avanços tecnológicos, é mais generoso que nos tempos bíblicos: o CEO (que é Noé, naturalmente) autorizou que 20 adultos fossem levados.

Qual será a proporção ideal entre machos e fêmeas? Dez de cada, para manter a tradição dos casais? Não. Só um empresário muito tradicional cai nessa. Na realidade, uns três machos talvez sejam o ideal. Assim, eles podem inseminar as 17 fêmeas – que darão a luz, caso tudo dê certo, a 17 filhotes.

Uma gestação de elefante leva 2 anos e produz um único indivíduo; gêmeos são raríssimos. É melhor não brincar com a sorte, e garantir a produtividade máxima. Alguns machos sobressalentes (dois, nesse caso) podem ser úteis para aumentar a variabilidade genética do grupo, e cobrir um ao outro em caso de doenças e acidentes. 

Já deu para perceber essa conta não se aplica só aos elefantes. Qualquer grupo de mamíferos em que haja dois, três ou quatro fêmeas para cada macho produzirá uma prole mais numerosa, porque machos não passam longos períodos carregando suas crias na barriga, e portanto estão livres para inseminar quem eles quiserem por aí. Essa é uma constatação matemática, ainda que bastante cafajeste. 

Limitei a afirmação a mamíferos, mas a verdade é que, com poucas exceções – como os cavalos-marinhos –, na natureza é sempre a fêmea que fica com o grosso do investimento na criação dos filhos (o motivo pelo qual isso acontece é assunto para outra discussão, que você pode entender aqui, na nossa matéria sobre monogamia).

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Esse descompasso se manifesta de formas variadas: entre pássaros, pode ter a ver com chocar os ovos e levar alimento ao ninho. Em uma determinada espécie de sapo, de nome científico Pipa pipa, significa carregar os ovos em minúsculas bolsas nas costas. 

Eis que surge um problema: se é sempre mais eficiente do ponto de vista demográfico ter mais fêmeas do que machos em uma população, então por que praticamente todos os seres vivos sexuados de grande porte  – incluindo os seres humanos – produzem filhotes dos dois sexos em números iguais?

Por que não produzir mais fêmeas do que machos, e assim garantir a eficiência máxima na produção de filhotes? O primeiro evolucionista a propor uma explicação razoável para o fenômeno da paridade entre os sexos foi R. A. Fisher, na década de 1930. Décadas depois, em 1967, o biólogo roqueiro William Hamilton colocou essa explicação no papel mais detalhadamente.

A genialidade de Hamilton não consistiu em só em organizar o raciocínio de Fisher, mas também em fazer uma pequena lista de seres vivos que representariam exceções a esse raciocínio  – e que, justamente por isso, seriam úteis para verificar se ele está certo ou errado. 

Vamos começar de uma população dividida ao estilo da arca de Noé tradicional, com 10 machos e 10 fêmeas. Imagine que uma mutação peculiar surgiu em um dos machos: 4 em cada 5 os espermatozóides que ele produz carregam o cromossomo X, e não o Y. Isso significa que, na média, 4 em cada 5 dos filhotes desse macho serão, obrigatoriamente, fêmeas (com cromossomos sexuais XX).

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Legal. Corta para daqui uns 10 anos. Nessa altura, os elefantes mais velhos já morreram. E os filhotes que entraram no lugar, graças à mutação nesse único indivíduo, causaram uma pequena distorção demográfica: agora, há 13 fêmeas e só 7 machos. Graças ao princípio da arca de Noé capitalista, a população vai crescer mais que o normal, sempre com a balança pendendo para o lado das fêmeas.

E a próxima geração terá, digamos, 16 fêmeas e 8 machos (repito: esses números são hipotéticos. O que importa é o fenômeno de crescimento desigual para o lado das fêmeas). 

Só há um problema: conforme o número de fêmeas aumenta, se torna cada vez mais vantajoso ser um macho. Afinal, nessa situação desequilibrada, os poucos machos que restam têm muito mais fêmeas à disposição para inseminar do que teriam normalmente.

E aí a pressão se inverte: machos que tendem a produzir filhotes igualmente machos vão conseguir ter muito mais filhos e netos do que conseguiam antes. E esses filhos e netos também vão carregar os genes que dão preferência a machos. Logo, como um pêndulo, o número de machos passa a aumentar mais rápido, e a situação volta à estaca zero. Os sexos empatam novamente, e a vida segue. 

Resumindo o raciocínio nas palavras de Hamilton: “Suponha que machos nasçam com menos frequência que fêmeas. Um macho recém-nascido, portanto, terá mais oportunidades de acasalar que uma fêmea, e espera-se que ele deixe mais descendentes. Dessa maneira, pais com maior predisposição genética a produzir filhos machos tendem a ter um número maior de netos.”

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“Assim, os genes que aumentam a tendência a ter filhos machos se espalham, e o nascimento de machos se torna mais comum. Conforme a proporção de 1 para 1 é alcançada, a vantagem associada a ter filhos machos desaparece. A mesma lógica se aplica se os machos forem substituídos por fêmeas.”

Fica demonstrado novamente, de maneira elegante, que os animais não tomam a decisão mais sensata do ponto de vista coletivo – que seria maximizar o output de filhotes. Eles não têm espírito de corpo. Pelo contrário: eles só estão preocupados em transar, porque isso é instintivo (e, às vezes, gostoso).

O resto se dá por meio de um fenômeno puramente estatístico, em que genes que propiciam a formação de filhotes machos ou fêmeas tem mais ou menos chances de atuar de acordo com o número de machos e fêmeas que já existem na população.

É mais fácil conceber esse equilíbrio em termos econômicos: se aumenta o consumo de feijoada, aumentam junto as vendas de Eno – mesmo que a fábrica de pastilhas de antiácido não tenha fechado um acordo com a indústria da carne de porco.

Um jeito de provar que o raciocínio de Fisher e Hamilton está correto é pensar em exceções. Então imagine uma espécie em que toda a reprodução é exclusivamente incestuosa. Irmãos só transam com irmãos, e ninguém mais (Stephen Jay Gould, de Harvard, cita o exemplo de um ácaro do gênero Adactylidium – que, não bastasse o fato nojento de viver no seu travesseiro, faz exatamente isso).

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Agora, suponha que surja, entre os ácaros, um desses genes que aumenta a tendência ao nascimento de fêmeas. Será que apareceria alguma mutação favorável aos machos para compensar o desequilíbrio?

 

Não. Na verdade, entre os Adactylidium, um único irmão macho insemina suas várias irmãs fêmeas antes mesmo de nascer, ainda dentro da mãe. E então morre. A única razão de ser do macho é viabilizar a produção de fêmeas. Por que?

É o seguinte: todo pai faz um investimento nos seus filhos. Entre seres humanos, isso envolve fornecer a abrigo, comida e educação a eles – coisas que demandam tempo e dinheiro. Por que nós estamos dispostos a investir esse tempo e esse dinheiro?

Do ponto de vista estritamente biológico, porque nossa herança precisa ser passada para frente. Ter um grande número de filhotes e fazer com que eles cheguem em segurança à vida adulta é o objetivo de todo animal.

Se já é preciso investir recursos na prole de alguma forma (isso é inescapável) e o ambiente apresenta uma situação em que investi-los em machos dá mais retorno do que investi-los em fêmeas, é óbvio que animais capazes de investi-los em machos vão prosperar. Ter um filho macho em um ambiente em que já há muitas fêmeas sobressalentes garante que você vai ter muito mais netos do que teria normalmente. E aí, os genes que aumentam a produção de machos vão se espalhar.

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O problema é que isso não vale se as fêmeas também forem suas filhas.

Em uma situação em que os pais do macho e da fêmea de um casal são os mesmos (como acontece com os ácaros incestuosos), produzir mais machos para se aproveitar da proliferação de fêmeas seria uma forma de autossabotagem, porque cada macho a mais representaria uma fêmea a menos, e aí os machos não teriam quem inseminar.

Em outras palavras: num sistema fechado, em que você só pode produzir um número determinado de crias, investir em machos sempre significará tirar de fêmeas. É matematicamente impossível se aproveitar de você mesmo. O incesto, portanto, gera uma situação em que a exceção prova a regra de Hamilton e Fisher.

Só é importante reforçar: os seres vivos não sabem disso conscientemente. Eles não fazem contas nem organizam reuniões em que decidem em que sexo é mais vantajoso investir no momento. Mutações vantajosas são como ações de uma empresa que dá muito lucro sendo sorteadas, distribuídas ao acaso – e não compradas por indivíduos que tem consciência de que elas são um bom negócio.

Em suma: continue a transar. A natureza faz o resto.

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