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As filhas de Eva

Estudando o DNA das populações atuais, cientistas conseguem reconstruir a descendência de

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 Maio 2000, 22h00

Fabiana Parajara e Claudio Angelo

Há cerca de 145 000 anos, uma espécie recém-formada de primata começou a proliferar na região central da África. Seus representantes eram poucos – uns 2 000 indivíduos. Se uma catástrofe natural tivesse ocorrido naquele momento, é provável que toda a espécie, o Homo sapiens sapiens, tivesse desaparecido. Hoje, na melhor das hipóteses, haveria um neandertal lendo esta revista no seu lugar.

Como você bem pode testemunhar, a espécie não sumiu. Mas, daquele grupo primordial, apenas uma mulher deixou uma linhagem duradoura de descendentes. Os cientistas batizaram-na de “Eva”. Não sem razão. Todas as populações atuais, dos sul-africanos aos índios da Patagônia, evoluíram dela.

Analisando o DNA desses povos, hoje os pesquisadores tentam reconstruir a árvore genealógica dos descendentes de “Eva”. Eles descobriram que ela deixou dezoito filhas, que saíram da África para colonizar o mundo e geraram os nossos grandes troncos populacionais. Somos, portanto, os descendentes das dezoito filhas de Eva.

Agora, o geneticista americano Peter Underhill, da Universidade Stanford, está atrás do resto da família. Pesquisando o cromossomo Y, um pedaço do material genético transmitido apenas do pai para os descendentes homens (veja o infográfico na página 84), ele acredita haver chegado ao Adão primordial – que pode não ter sido o marido de Eva, mas foi o homem cujas linhagens geraram as nossas. Ele teria deixado dez ramos principais de herdeiros. “Os dados de Underhill são animadores, porque mostram que Adão viveu numa época próxima à de Eva”, diz um dos descobridores da primeira mulher, Mark Stoneking, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha. Ambos talvez tenham vivido no mesmo bando. Podem, até, ter tido filhos. Mas a Genética não é capaz de cruzar as informações do DNA mitocondrial com as do cromossomo Y e comprovar a existência de linhagens comuns aos dois. Mesmo porque talvez nem tenha rolado nada.

Os estudos do americano, ainda inéditos, são apresentados pelo italiano Luca Cavalli-Sforza, diretor do laboratório onde Underhill trabalha, na Universidade Stanford, no livro Genes, Peoples and Languages (Genes, Povos e Línguas), recém-lançado nos Estados Unidos. Ele também confirma a hipótese, proposta por vários cientistas, de que os seres humanos migraram primeiro para o sudeste da Ásia e para a Oceania cerca de 60 000 anos atrás, antes de chegar à Europa.

Descubra, nas próximas páginas, como o DNA ajuda os cientistas a contar a história dessa grande viagem.

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Pré-História em tubos de ensaio

Um dos melhores documentos para o estudo da evolução e da Pré-História humana não está enterrado em uma caverna remota no Oriente Médio. É muito fácil de estudar. Todos temos um monte dele, arrumado em pacotes dentro das células. Ali, no código genético, está o registro de tudo o que aconteceu com a humanidade desde 5 milhões de anos atrás, quando os hominídeos se separaram dos chimpanzés. “Podemos fazer História sem precisar recorrer a ossos velhos ou arquivos poeirentos”, brinca Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o maior especialista em genética de índios brasileiros.

Esse registro vivo se acumula em forma de mutações, nome dado a qualquer mudança em uma determinada seqüência de DNA. Quando um grupo humano se divide e migra para outro ambiente, o código genético de seus membros também acumula mutações distintas. Dentro de um certo espaço de tempo – normalmente alguns milhares de anos – eles geram populações novas. “Conseguimos saber que o homem surgiu na África porque em nenhum outro continente a diversidade genética, ou o número de mutações, é tão grande”, explica o biólogo Marcelo Briones, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Os cientistas descobrem essa história contando o número de mutações em dois pedacinhos de DNA. Um deles é o DNA da mitocôndria, a parte da célula responsável pela produção de energia, que, localizada fora do seu núcleo, escapa à mistura de genes do pai e da mãe durante a fecundação (veja o infográfico). O outro, o cromossomo Y, exclusivamente masculino, também passa ileso pelo embaralhamento genético porque não tem par feminino com o qual se misturar. Cada povo porta o conjunto de mutações que o caracteriza nessas duas fitas de DNA, como se fossem etiquetas genéticas. Há dois tipos de “etiquetas”: o haplótipo, constituído por apenas um gene característico, e o haplogrupo, formado por um conjunto de genes.

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Questão de fé

A presença de um haplogrupo de uma população em outra pode resolver até questões religiosas. Foi o que aconteceu com a tribo sul-africana dos lembas. Eles não comem carne de porco, fazem circuncisão no pênis e afirmam, recorrendo à sua mitologia, descender de judeus. Olhando para eles, que são todos negros, ninguém diria. Mas uma análise de DNA feita em 1999 mostrou que os lembas têm um haplótipo característico dos cohanin, um dos ramos genéticos do povo judeu. O ancestral comum, de acordo com os cientistas, viveu entre 2 600 e 3 000 anos atrás.

DNA ajuda a datar migrações

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A época de partida da África dos Homo sapiens também pode ser confirmada pelo DNA. A genética é mais eficiente do que a datação por carbono-14, porque consegue descrever acontecimentos anteriores a 40 000 anos. Daí para trás, o carbono radioativo deixa de ser preciso.

No caso dessa grande migração, os cientistas analisaram a distância genética entre os continentes, ou seja, o número de mutações que separam africanos de asiáticos e estes últimos dos australianos, europeus e americanos. Essas distâncias coincidem, mais ou menos, com as datas estabelecidas pelos arqueólogos com base no estudo de fósseis: há 100 000 anos da África para a Ásia; há 55 000 anos da África para a Oceania; e há 40 000 da África para a Europa.

Uma dessas datações, no entanto, continua imprecisa, a da chegada à América. “Não há consenso entre os arqueólogos sobre quando isso aconteceu”, afirma Luca Cavalli-Sforza. Até há pouco, supunha-se que não poderiam ter chegado antes de 15 000 anos atrás – os artefatos humanos mais velhos encontrados até então, no sul dos Estados Unidos, tinham 11 500 anos. Com a descoberta de um acampamento indígena de 12 500 anos em Monte Verde, no sul do Chile (veja SUPER ano 13, número 2), essa data começou a recuar. Hoje, já se admite uma data há cerca de 20 000 anos para a chegada à América. Apesar da controvérsia, os geneticistas estabeleceram outra: 32 000 anos, no mínimo. O cálculo foi feito por Cavalli-Sforza tomando por base o número de mutações em vários genes que separam asiáticos de ameríndios. “A Genética é um meio mais sofisticado de estudar a História e a evolução, porque consegue descrever um processo em detalhes”, afirma Marcelo Briones, da Unifesp.

Passado recente

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Um exemplo dessa minúcia é a expansão da agricultura na Europa. Há muito se sabia que o hábito de cultivar plantas surgiu no Oriente Médio há 10 000 anos e se espalhou pela Europa nos milênios seguintes. Mas ignorava-se como isso tinha acontecido. Os antigos europeus aprenderam a plantar com os vizinhos ou foram invadidos por eles?

A resposta estava no sangue. Mais exatamente, no gene que controla a produção de uma determinada proteína do sangue – o fator Rh. Nos países do Oriente Médio, todo mundo é Rh-positivo, ou seja, todos possuem o gene que carrega a receita para fazer aquela proteína. Na Europa, a freqüência desse gene cai numa proporção constante quando se vai dos Bálcãs para a Escandinávia. Ou seja, os agricultores foram invasores que avançaram do sudeste para o noroeste. “É como se, um dia, toda a Europa tivesse sido Rh-negativa”, escreve Cavalli-Sforza em seu novo livro.

Trabalhando juntas, a Genética e a Arqueologia concluíram que a revolução agrícola se espalhou pela Europa em migrações sucessivas vindas do Oriente Médio. Aliadas, as duas ciências estão acabando com os mistérios da nossa Pré-História. Não vai ficar osso sobre osso.

fparajara@abril.com.br / cangelo@abril.com.br

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Algo mais

O grupo humano contemporâneo cujo DNA se assemelha mais ao de Eva (na ilustração à esquerda) e Adão são os bosquímanos da África do Sul e Botsuana, pertencentes ao grupo lingüístico khoisan.

Eles não se misturam

Partes do DNA da mãe e do pai passam intactos de geração a geração.

1. Como qualquer célula, o óvulo humano tem milhares de mitocôndrias. Esses órgãos são as fábricas de energia da célula e carregam o seu próprio DNA.

2. Quando o óvulo é fecundado, o DNA mitocondrial escapa à mistura dos genes do pai e da mãe. É por isso que ele será sempre exatamente igual ao da sua mãe, a menos que ocorra uma mutação.

3. O cromossomo Y é que define o sexo masculino. Ele é transmitido do pai para os filhos homens e também fica de fora do troca-troca genético na fecundação. Todo homem tem o cromossomo Y exatamente igual ao do pai.

O grande êxodo

Seqüências de DNA são o passaporte das migrações dos filhos de Eva e Adão.

Conflito

Acredita-se que uma primeira tentativa de migração da nossa espécie para a Europa tenha acontecido há 100 000 anos. Mas a viagem parou em Israel. Os cientistas acham que a culpa foi do frio que fazia lá, na época, pois a região estava saindo de uma glaciação. Pode também ter havido um conflito com os neandertais, que já ocupavam o lugar. Ou as duas coisas. O Velho Continente só seria tomado de vez pelos descendentes de Eva há 40 000 anos.

O berço

Foi na África que a humanidade surgiu. A prova está na diversidade genética do continente, muito maior que em qualquer outro lugar do planeta – sinal da longevidade da evolução. Um queniano e um nigeriano têm menos genes em comum que um italiano e um tibetano. Comparando o DNA mitocondrial dos africanos com o de outras populações atuais, os pesquisadores encontraram um número muito maior de mutações. Isso significa que os humanos estão por lá há mais tempo.

De barquinho

A Ásia começou a ser povoada há 60 000 anos, segundo os estudos mais recentes. Para lá migraram, via Etiópia, uma filha de Eva, que deu origem a seis linhagens asiáticas, e um filho de Adão, de quem descenderam sete linhagens. Para o geneticista italiano Luca Cavalli-Sforza, é possível que a migração até o sudeste asiático tenha sido feita com a ajuda de barcos.

Eva

Nascida provavelmente entre 150 000 e 200 000 anos atrás, ela é o elo comum entre o DNA mitocondrial de todos os seres humanos modernos. Deu origem a três grandes troncos genéticos. Dois deles ficaram na África e um migrou para a Ásia, onde se ramificou para outros continentes.

Adão

Considerado o cromossomo Y fundador da espécie. Os estudos até agora indicam apenas que ele pode ter sido contemporâneo de Eva e originado três grandes linhagens. Uma delas migrou para fora da África e espalhou-se pelo mundo.

Aparências enganam

Não se deixe levar pela cor da pele. Aborígines australianos estão mais próximos geneticamente de indianos e chineses do que de africanos nativos. A Oceania foi ocupada pelos descendentes de Eva entre 50 000 e 40 000 anos atrás. A cor escura provavelmente é uma coincidência evolutiva.

Destino final

Data de chegada à América ainda é imprecisa.

Adão siberiano

Somente uma linhagem dos dez filhos de Adão veio para a América e sobreviveu nas populações indígenas americanas. O primeiro cromossomo Y do continente provavelmente veio da região do Rio Ienissei, na Sibéria, há 40 000 anos. Ele é compartilhado por 90% dos índios americanos.

O verdadeiro descobrimento

Segundo a genética, a povoação da América começou há 32 0000 anos.

Evas americanas

O continente americano foi povoado por pelo menos quatro das dezoito linhagens de Eva. Elas deram origem aos três principais grupos lingüísticos do continente: o na-dene (falado no Canadá e nos Estados Unidos), o ameríndio (a suposta língua original de todos os nativos sul-americanos) e o esquimó-aleuta, que sobrevive no Ártico, falado pelos esquimós. Duas linhagens podem ter convergido para um mesmo tronco lingüístico.

Genes X ossos

Até recentemente, os arqueólogos torciam o nariz para qualquer um que ousasse afirmar que o homem teria chegado à América há mais de 15 000 anos. Os genes fizeram essa data recuar para, no mínimo, 32 000 anos. No entanto, os vestígios arqueológicos mais velhos aceitos pela comunidade científica têm 12 500 anos. Foram encontrados no sul do Chile.

Elo perdido

O antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo, propôs a hipótese de ter existido uma corrente migratória anterior à asiática, formada por povos diferentes dos asiáticos. O crânio de Luzia, o mais antigo vestígio humano das Américas até agora, não deixa dúvidas quanto a essa diferença – ele é claramente negróide, como o dos australianos. Mas o seu DNA, em péssimas condições, ainda não pôde ser estudado.

Parentes no museu

Como você se sentiria tendo um esqueleto de 9 000 anos como parente? O inglês Adrian Targett, um professor escolar de 45 anos, está orgulhoso. Ele virou celebridade na cidadezinha de Cheddar Gorge, a oeste de Londres, depois que um teste de DNA revelou que era descendente direto do homem de Cheddar, um fóssil humano tido como o primeiro habitante daquela região. A notícia chocou-o.

“Só me submeti ao exame para mostrar aos alunos como recolher células para exame genético. Não sabia nada sobre esse meu ancestral”, contou Targett, depois que descobriu o parentesco.

Um morador da vila de Cabanaconde, no Peru, também poderia visitar a família num museu. Um teste de DNA mitocondrial mostrou que alguém da aldeia era parente de uma múmia inca de 500 anos – uma jovem nobre descoberta em 1999 no alto de um vulcão na Argentina. “Ambos tiveram um ancestral comum há 600 anos”, garante o geneticista Keith McKenney, da Universidade George Mason, nos Estados Unidos, que analisou milhares de células de peruanos anônimos. O descendente de Cabanaconde não foi identificado e desconhece seu parentesco imperial.

Pé na taba

O geneticista mineiro Sérgio Danilo Pena sempre achou que descendesse de judeus belgas. Como você pode ver pela foto ao lado, ele é o tipo de sujeito que não teria dúvidas ao se declarar “branco” no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 1996, no entanto, Pena descobriu que sua trisavó de judia não tinha nada. “Ela era índia”, conta.

A revelação veio de um exame de DNA mitocondrial. O cientista e sua equipe, do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais, foram encarregados de descobrir se os fósseis de homens pré-históricos da região de Lagoa Santa, também em Minas Gerais, tinham genes negróides ou não. “Para evitar a contaminação das amostras de DNA dos fósseis com uma transmissão acidental de células dos pesquisadores, fizemos a análise genética de todos no laboratório”, lembra-se. “Descobrimos que todo mundo tinha um ancestral índio por parte de mãe. Inclusive eu.”

Daí surgiu a idéia de verificar se aquela era uma tendência geral na população brasileira. Os pesquisadores, então, colheram amostras de DNA mitocondrial de 47 mulheres e 200 homens “brancos” segundo as estatísticas. Não deu outra: 33% dos pesquisados tinham haplogrupos – “etiquetas” genéticas – de ameríndios e 28% de africanos. Ou seja, 61% dos brancos brasileiros têm um ancestral negro ou índio por parte de mãe. Por outro lado, o estudo do cromossomo Y dos brancos mostrou que 90% das linhagens masculinas são mesmo européias. A família de Sérgio Pena confirma a regra. O tal judeu belga era o trisavô do cientista – o marido da índia.

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