E se uma grande tempestade solar atingisse a Terra?
Em 2012, uma forte tempestade solar passou de raspão na Terra. Se ela tivesse acertado, possivelmente estaríamos nos recuperando até hoje.
Entre 1 e 2 de setembro de 1859, a noite virou dia em algumas partes do mundo. Mineiros nos EUA acordaram de madrugada, achando que havia amanhecido, e começaram a preparar o café, até olharem nos relógios. Não era o sol, mas auroras boreais, que foram avistadas em latitudes baixas, como o Caribe e o sul do Brasil. Os mais religiosos acreditaram que era o apocalipse. Outros ficaram maravilhados com o que assistiram: um jornal de Baltimore, nos EUA, escreveu sobre “uma luz maior que a da lua cheia, mas com suavidade e delicadeza indescritíveis, que pareciam envolver tudo o que tocavam”.
Menos encantados ficaram os telegrafistas. A coisa causou um pico de corrente elétrica que deu choques em seus operadores, formou arcos voltaicos nos fios e destruiu, com incêndio, um monte de equipamentos. Outros telegrafistas aprenderam a simplesmente desligar o aparelho do suprimento de energia (então na forma de baterias) e trabalhar só com a energia induzida nos fios pelo fenômeno.
O que aconteceu? Dois astrônomos amadores britânicos, Richard Carrington e Richard Hodgson, haviam observado uma maciça explosão na superfície do Sol, emitindo matéria, no dia 1º de setembro. Em novembro, suas observações desse evento, até então desconhecido, foram apresentadas à Sociedade Astronômica Real. Quando veio o clarão de dezembro, então, outros astrônomos ligaram os pontos.
O Evento de Carrington, como ficou conhecido, foi uma tempestade solar – de fato, a mais forte de que temos notícia. Essas erupções, que lançam partículas e campos eletromagnéticos fortíssimos espaço afora, acontecem o tempo todo, mas raramente atingem a Terra – em 2012, uma erupção com a mesma intensidade de 1859 passou de raspão pelo planeta.
O que aconteceria se essa de 2012 tivesse nos atingido? Possivelmente, estaríamos nos recuperando ainda hoje.
Durante a tempestade, que dura algumas horas, parte importante das comunicações seria suspensa. Os sinais de rádio usados por satélites e aviões teriam interferência maciça e parariam de funcionar. Um avião sem rádio é um avião cego – é inconcebível voar sem rádio hoje. A catástrofe que se deu nos telégrafos em 1859 aconteceria no tráfego aéreo. Em tempos sem pandemia, cerca de 10 mil aviões estão no ar ao mesmo tempo a cada momento, levando 1,2 milhão de pessoas. Numa realidade em que muitos deles não conseguiriam pousar, teríamos uma tragédia.
No espaço, muitos satélites seriam destruídos pelo efeito direto das emissões. Outros poderiam ser derrubados de sua órbita pelo aquecimento da camada superior da atmosfera. Isso faz com que o ar se expanda, aumentando a sua densidade (que é pouca, mas existe) na baixa órbita terrestre e causando atrito, que faz os satélites desacelerarem e caírem. Os astronautas na Estação Espacial Internacional, se escapassem desses dois, poderiam até morrer por conta da radiação cósmica extra.
Mas o efeito mais desastroso seria no solo. Uma tempestade eletromagnética causaria correntes elétricas em materiais condutivos, por indução (foi o que aconteceu com os telégrafos em 1859). Qualquer coisa ligada na rede elétrica poderia ser destruída. Danos em transformadores e geradores causariam blecautes de longo prazo, até o estrago ser reparado.
O mundo moderno não pode ficar sem eletricidade. Quem viu o que aconteceu no Amapá ano passado, quando o incêndio em um só transformador causou blecautes parciais e totais por 22 dias, faz só uma ideia bem modesta do que estamos falando. Seriam blecautes totais, talvez por meses. Pessoas morreriam nos hospitais. A água pararia de chegar, porque depende de bombas elétricas. Com isso e sem comunicação, incêndios causados pela própria tempestade solar poderiam ficar sem solução.
A consultoria Lloyd’s calculou o impacto que uma tempestade solar teria nos EUA. A destruição chegaria a US$ 3 trilhões. Isso é mais que seis vezes o pior desastre natural já registrado, o tsunami de 2011, e três vezes Chernobyl – considerando apenas o que aconteceria nos Estados Unidos.
Um pequeno apocalipse, de fato. Mas nada capaz de nos levar a uma nova Idade das Trevas. Porque nem tudo seria atingido, e não por igual.
Primeiro, haveria algum tempo de aviso. Uma tempestade solar não é o Sol brilhando mais, o que chegaria à velocidade da luz – quando a gente visse, já estaria aqui. É uma explosão de gás hiperaquecido – plasma, que tem potencial destrutivo eletromagnético – que viaja pelo espaço. Pode levar horas para chegar. A emissão do Evento de Carrington levou 17,6 horas.
Agências como a Nasa têm sistemas de observação e de aviso prévio de tempestades solares, estabelecidos porque o risco é bem conhecido. Eles incluem satélites no espaço profundo, mais distantes daqui do que a Lua, orbitando o Sol. Eles podem medir com exatidão a intensidade da erupção antes de seus efeitos chegarem à Terra.
As operadoras de rede elétrica e de aeroportos poderiam agir a tempo – interrompendo transmissões e pousando aeronaves de forma emergencial.
E há as gaiolas de Faraday. Elas desviam a energia eletromagnética e protegem aquilo que está em seu interior. A maioria dos grandes servidores fica envolvida em caixas de metal, e elas servem como boas gaiolas. Sendo assim, essas máquinas poderiam sobreviver, desde que desligadas da tomada. E os dados da nuvem permaneceriam na nuvem; você não perderia seu Gmail.
Por fim, o desastre não teria o mesmo impacto no mundo todo. A emissão não atinge o solo, mas interage com o campo magnético da Terra, que desvia a radiação solar. Esse campo funciona como um escudo, que protege o planeta do vento solar (as partículas eletricamente carregadas que o Sol libera o tempo todo). Esse escudo é mais fraco perto dos polos. Por isso rolam auroras boreais lá o tempo todo – elas são as partículas carregadas que o Sol emite interagindo com a atmosfera (nesses casos, sem a intensidade necessária para causar estragos).
No advento de uma tempestade (que é nada mais do que vento solar em quantidades absurdas), a disrupção eletromagnética partiria dos polos para latitudes mais próximas dos trópicos. Foi isso que causou as auroras no Caribe e no sul do Brasil em 1859. Caso a tempestade de 162 anos atrás se repetisse, então, a maior parte do Brasil não perceberia de forma direta.
Basicamente, a internet pararia de funcionar por algumas horas, já que os servidores do Hemisfério Norte teriam de ficar desligados até que a tormenta eletromagnética seguisse seu caminho espaço afora.
De resto, talvez tivéssemos auroras boreais no Sudeste, caso a tempestade fosse um pouco mais pesada. Mas já seria um belo susto. E mais uma prova de que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã intuição.