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Tudo que você come é transgênico. E tá tudo bem.

Faz milhares de anos que modificamos o genoma de animais e plantas para adaptá-los às nossas necessidades. A tecnologia atual só tornou esse processo mais rápido e preciso. Entenda por que eles não são sinônimo de agrotóxicos – e podem ser aliados da agricultura sustentável.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
13 set 2024, 14h00

Trinta anos atrás, em maio de 1994, o tomate Flavr Savr chegou às gôndolas dos EUA e ganhou o título de primeiro organismo geneticamente modificado – GMO, na sigla em inglês – disponível ao público. 

Desde então, não faltaram transgênicos chegando às prateleiras, nem estudos atestando que eles são inofensivos. Em 2013, por exemplo, um grupo de cientistas italianos analisou 1.783 artigos científicos sobre segurança e o impacto ambiental de GMOs, e não encontrou nada preocupante. (1)

Já em 2016, um grupo de 50 cientistas convocados pela Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA elaborou um relatório de 400 páginas analisando mais de mil estudos sobre GMOs publicados ao longo de 29 anos. Nenhum desses profissionais, diga-se, tinha qualquer vínculo com empresas do setor. (2) 

Conclusão? “Não há evidências de aumento na incidência de câncer, obesidade, doença hepática, autismo, doença celíaca ou alergias alimentares”, e “não há evidência conclusiva de uma relação de causa e efeito entre culturas transgênicas e problemas ambientais”.

Ainda bem, porque é virtualmente impossível evitá-los. 96,5% da soja e 88,4% do milho cultivados no Brasil são GMOs, e boa parte da pecuária é alimentada com esses grãos. Comeu fora? Haverá algum transgênico na comida. Comprou um produto ultraprocessado? É bem provável que haja GMOs na fórmula. 

Sabe-se que a maioria dos americanos come transgênicos todos os dias – e o Brasil, que é o segundo maior produtor de GMOs do mundo e obtém 20% de suas calorias de alimentos ultraprocessados (o que, evidentemente, é péssimo), vive uma realidade similar.

Mesmo assim, 33% dos brasileiros acham que GMOs fazem mal para a saúde. Essa má reputação tem várias raízes compreensíveis.

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Diga-me com quem andas…

É fato que os transgênicos, embora inofensivos por si só, são uma peça importante da agropecuária em escala industrial. As empresas de biotecnologia precisam inserir certos genes nas sementes para que as plantas cresçam imunes aos herbicidas e pesticidas usados para protegê-las. Caso contrário, essas toxinas acabariam matando as próprias plantações.

Acontece que as ervas-daninhas e insetos tendem a evoluir resistência aos agrotóxicos, de modo que o coquetel precisa ficar cada vez mais variado e reforçado (e as plantas, cada vez mais resistentes) para a estratégia funcionar. 

muitos problemas aí, como erosão, agrotóxicos e fertilizantes contaminando rios e córregos, perda de biodiversidade e esgotamento do solo por causa do cultivo de uma espécie só em grandes áreas, desmatamento de biomas como Cerrado e a Amazônia e a dependência crônica da balança comercial brasileira em produtos de baixo valor agregado, como a soja. Só nos EUA, a poluição de corpos d’água por fertilizantes requer esforços de limpeza que custam US$ 2 bilhões por ano.

Acontece que os transgênicos em si não são um desses problemas. Eles são só…comida, comprovadamente segura. 

Prova disso é que a mesmíssima tecnologia pode ser usada de maneira benéfica para pequenos produtores. Um exemplo conhecido é o arroz dourado, modificado em laboratório para produzir o pigmento betacaroteno – precursor da vitamina A.

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A ideia da Fundação Rockefeller, que começou o projeto em 1982, era fornecê-lo gratuitamente a agricultores de subsistência do Sudeste Asiático e da África para diminuir a deficiência crônica desse nutriente na população de baixa renda dessas regiões. 15% das grávidas e 33% das crianças em idade pré-escolar sofrem do problema mundo afora, que cega e mata. 

Mesmo assim, o Greenpeace e outros grupos lideram uma campanha bem-sucedida de boicote ao arroz – que incluiu invadir e destruir uma plantação-teste nas Filipinas em agosto de 2013. Nem mesmo uma carta escrita em 2016 por um grupo de 107 prêmios Nobel mudou a cabeça dos ambientalistas. 

Um arroz anabolizado criado nos EUA é a melhor solução para um problema socioeconômico do Sudeste Asiático? Pode ser que não. Talvez cenouras resolvessem o problema. Mas isso não tem a ver com a segurança do produto, e sim com muitos outros fatores por trás da adoção bem-sucedida de um cultivo por uma população. 

Nas palavras de Michael Pollan, em 2013: “o produto OGM ignora contextos – culturais, nutricionais etc. Será que as pessoas vão comer arroz amarelo brilhante, que demora mais para cozinhar, em locais onde o combustível é escasso? Talvez. Mas elas já não comem arroz castanho, que já existe e é bem mais nutritivo.” 

Em suma: a edição genética é só uma tecnologia, que não serve apenas para tornar soja ou milho imunes a agrotóxicos. Cabe a nós usá-la eticamente, como aliada da agricultura sustentável, e sempre considerando as peculiaridades da culinária e cultura de cada povo. 

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Pensar nisso é importante porque, nos próximos anos, conforme as mudanças climáticas mexerem com a biodiversidade, a temperatura e o regime de chuvas, pequenos e médios agricultores poderão se beneficiar de GMOs resistentes a problemas como pragas e estresse térmico ou hídrico. Essas ainda são alterações complexas para a tecnologia do presente, mas podem se tornar corriqueiras no futuro. 

Biotecnologia pré-histórica

Se mesmo essa ideia soa desconfortável, é porque o preconceito com os GMOs não tem só a ver com críticas ao agronegócio, mas também com um medo mais difuso: o de que haveria algo fundamentalmente diferente na biologia de um transgênico em relação a uma planta comum – algo que faria mal a nossa saúde. 

lsso é balela. Muito antes de existir tecnologia para copiar e colar genes entre espécies, agricultores pré-históricos atrás já mexiam com o genoma de nossas plantas e animais domésticos para torná-los mais dóceis, nutritivos, saborosos ou produtivos que suas versões selvagens.

Por exemplo: 9 mil anos atrás, no atual Iraque, a cevada das plantações já era tão diferente da gramínea selvagem original que não se reproduzia sem auxílio humano. Para torná-la mais calórica e prática de colher, era melhor que as sementes fossem gorduchas e não se dispersassem tão facilmente a partir da planta-mãe. 

Esses objetivos eram alcançados com cruzamentos e seleção artificial: quando você separa, dentre mudas de planta ou filhotes de um animal, os que apresentam características desejadas – e então os reproduz, de modo a reforçá-las com o passar das gerações. 

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Da Mesopotâmia até aqui, nossa espécie vem aproiveitando todo tipo de mutação genética e cruzamento a nosso favor.

A laranja-Bahia tem um umbigo porque consiste em duas laranjas: um fruto pequeno cresce dentro do fruto maior (corte-a ao meio verticalmente e você perceberá os gomos da laranjinha encolhidos dentro do laranjão). Ela foi descoberta em 1820 no quintal de um monastério nos subúrbios de Salvador, e todos os pés que existem hoje são clones. 

Muito antes da tecnologia para copiar e colar genes, agricultores pré-históricos já mexiam inconscientemente com o DNA de cultivos e pets.

A laranja comum, por sua vez, é um cruzamento da tangerina com um cítrico de casca grossa pomelo muito usado para fazer refrigerante na Argentina. Lembra um bocado o caso das mulas e burros, que são filhotes de éguas com jumentos.

Às vezes, esses híbridos são mais sutis. Em 1910, pesquisadores do Jardim Botânico de Edimburgo cruzaram a batata selvagem S. demissum com a batata comum S. tuberosum e descobriram que o filhote das duas batatinhas é resistente ao P. infestans –  um microorganismo que, no século 19, destroçou plantações do tubérculo e matou um milhão de irlandeses de fome. 

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Essa proteção é crédito de um grupo de onze genes selvagens da demissum, que não equipam a batata doméstica comum. Mas ninguém sabia disso na época: a estrutura da molécula de DNA ainda era um mistério e o trabalho de Mendel, pai da genética, era recente.

Se alguém enxertasse esses onze genes de batata selvagem diretamente no genoma das batatas mais frágeis, o legume resultante seria considerado transgênico. Mas não havia tecnologia para isso, e não usamos esse rótulo porque ninguém vê um cruzamento tradicional como biotecnologia (ainda que seja). 

Em suma: se o critério para dizer que algo é “natural” é a ausência de intervenção humana deliberada no genoma, então não existe nada natural no seu prato. Boa sorte caçando cogumelos na mata. 

As bactérias fabricantes de insulina para diabetes são OGMs – antes delas existirem, era preciso usar pâncreas de porcos e vacas para conseguir o hormônio. A própria espécie humana reaproveita genes inseridos em nossa linhagem por um antigo retrovírus para formar a placenta. Ou seja: nós mesmos somos transgênicos.

A única diferença dos GMOs contemporâneos é que hoje é possível adicionar, remover ou alterar apenas os trechos de DNA que interessam, sem cutucar o resto do organismo – o que é mais rápido e eficaz do que filtrar gerações e mais gerações atrás de um resultado.

O que nos leva de volta ao título: tudo que você come tem alguns (ou muitos) genes diferentes das plantas originais. E tá tudo bem.

Fontes (1) artigo “An overview of the last 10 years of genetically engineered crop safety research”, por Alessandro Nicolia e outros; (2) livro Genetically engineered crops: experiences and prospects, das National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine; (3) consultoria Celeres, Idec; (4) Ibope Conecta (2016).

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