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Histórias esquecidas sobre os assuntos mais quentes do dia a dia. Por Felipe van Deursen, autor do livro "3 Mil Anos de Guerra"
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A origem do dia dos namorados gringo é muito melhor que a do nosso

Calma, isso não é um manifesto que diz o que você deve ou não comemorar. É só uma constatação, sem síndrome de vira-lata.

Por Felipe van Deursen Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 15h36 - Publicado em 11 jun 2018, 18h12

São Valentim é o santo em cuja data praticamente o mundo todo comemora o dia dos namorados, em 14 de fevereiro (daí o nome em inglês, Valentine’s Day). Mas quem foi Valentim? E qual a relação dele com casais apaixonados? Para começo de conversa, esse cupido não era só um, mas dois, talvez três (um caso de poliamor de flechadas?).

Segundo os bolandistas, uma associação jesuíta belga que trabalhou por mais de 300 anos coletando dados, registros e o que fosse possível para construir a biografia dos santos e mártires da Igreja, separando o mito da história, houve três Valentins diferentes mortos no século 3. Um faleceu na África ao lado de 24 soldados e a história toda não ocupa um tuíte. 

Os outros dois foram executados. Um deles era um padre romano chamado Valentim, que foi preso durante o reinado de Cláudio II. Sob a custódia do aristocrata Astério, o padre Valentim, mesmo preso, continuava pregando sobre as benesses de Cristo e sua missão de livrar os pagãos das sombras. Astério resolveu desafiá-lo: se ele pudesse curar sua filha da cegueira, Astério se converteria. Valentim repousou as mãos sobre o rosto da menina e disse: “Senhor Jesus Cristo, iluminai vossa criada, porque o Senhor é Deus, a verdadeira Luz.”

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“São Valentim”, óleo de cerca de 1510 (Leonhard Beck/Domínio Público)

E pronto. De acordo com a lenda medieval sobre o episódio, a menina enxergou, Astério e toda a família foram batizados, e a história teve final feliz. Só que não. O imperador soube do ocorrido e mandou executá-los. Valentim foi decapitado, e uma viúva piedosa o enterrou no lugar do martírio. Depois, ali foi erguida uma capela, na Via Flaminia, uma das antigas estradas romanas, que ligava a capital à atual Rimini.

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O outro Valentim era um bispo de Terni, na Úmbria, que também converteu alguém ao curar seu filho e também foi decapitado por ordem de Cláudio II e foi enterrado na Via Flaminia. Para os bolandistas, são duas versões para o mesmo santo. Só que nenhuma delas, fica claro, tem algum ideal romântico. Isso só foi adicionado na Idade Média. Nessa versão, aí sim, Valentim celebraria casamentos cristãos (que eram proibidos), entregaria bilhetes românticos para as pessoas presas e até teria se envolvido com a menina cega. Mas nada disso tem ligação direta com o homem executado no século 3.

O poeta inglês Geoffrey Chaucer, que viveu no século 14, fez o provável primeiro registro conectando o dia de São Valentim ao amor. Ele escreveu que nessa data os passarinhos se encontram para namorar. Com o surgimento do amor romântico na Idade Média, o 14 de fevereiro começou a ser mais associado aos corações enamorados. Nesse mês, em 1415, o Duque de Orleans escreveu a sua mui gentil namorada (“valentine”) que estava “doente de amor”. Shakespeare também contribuiu. Ofélia canta em Hamlet: “Raiou o dia de São Valentim; de pé todos estão/ Para ser vossa Valentina, irei/ Pôr-me à janela, então.”

O túnel do amor se abriu, e as cartas apaixonadas se espalharam pelos séculos e continentes até chegarem ao século 21 na forma de caixas de coração cheias de bombons, cartões inspirados e filmes açucarados. Uma indústria bilionária que maltrata os cotovelos solitários. 

Mas, na Idade Média, era outra indústria, a das relíquias religiosas, que movimentava a carreira de santo de Valentim. Pedaços de seu crânio estavam em diversas igrejas. Havia restos dele em Madri, Roma, Praga, Dublin, Chełmno, Glasgow, Birmingham, Lesbos, Malta. Pelo menos era o que essas respectivas congregações alegavam. Um bispo inglês usava a suposta cabeça de Valentim para se blindar de epidemias e curar possessões demoníacas. Em tempos em que 29 igrejas diziam ter os pregos da crucificação e cerca de 70 garantiam ter o leite de Maria, o que valia eram as histórias de martírio e santidade e os supostos restos carnais para manter a chama da fé acesa.

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Crânio atribuído a São Valentim, na Basílica Santa Maria in Cosmedin, em Roma (Dnalor_01/Wikimedia Commons)

Alguns estudiosos sugerem que a festa de São Valentim seria uma versão cristã, e mais branda, de uma festividade pagã (assim como o Natal, que também é uma sobreposição de datas comemorativas mais antigas). Na Lupercália, homens jovens sacrificavam bodes e cachorros e saíam correndo pelas ruas seminus chicoteando pessoas com pedaços da pele dos bichos mortos. As mulheres faziam fila para isso, pois acreditavam que ganhariam filhos saudáveis. Casais eram sorteados para ficarem juntos à força durante o festival – e, se desse certo, depois dele também. A Lupercália acontecia entre 13 e 15 de fevereiro e durou até 496, quando o papa Gelásio I a baniu. Mas não se sabe se ele deliberadamente quis substituir uma celebração pela outra.

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E o nosso 12 de junho, onde entra nisso? Em nenhum lugar. Em 1949, uma loja hoje extinta, a Clipper, queria incrementar as vendas de junho, um mês fraco para o comércio. O publicitário João Dória, pai do já ex-prefeito de São Paulo, sacou a ideia de criar um dia dos namorados. “Não é só com beijos que se prova o amor”, dizia o slogan. Coincidentemente ou não, a data escolhida foi o 12 de junho, véspera do dia de Santo Antônio (chamado “De Lisboa”, onde nasceu, ou “De Pádua”, onde morreu). E fim, essa é a história. Um slogan muito bem-sucedido que em menos de 70 anos decretou para o brasileiro que amor não se prova com beijos, mas também com buquês, joias, roupas e filas na depilação, no restaurante e no motel.

Ou seja, de um lado temos uma história milenar com pessoas executadas, um santo venerado por católicos, ortodoxos, luteranos e anglicanos, um imperador romano, uma festa louca pagã e Shakespeare. Do outro, uma campanha publicitária de enorme sucesso nos anos 1940. Nem para pegar carona de vez no mito de um dos nomes mais populares e queridos santos do panteão ela pegou, ficando na véspera e criando essa associação meio torta com o santo casamenteiro.

Mas pegou e esse é o nosso dia dos namorados, embora de uns anos para cá vejamos mais manifestações apaixonadas também no brasileiro e carnavalesco 14 de fevereiro. E, tal qual o Halloween, que vem de uma salada de influências de diversos povos, e até do Dia de São Patrício, que não é uma festa 100% irlandesa, o dia dos namorados, seja o de fevereiro ou o de junho, não carece de patrulha nem de gente que se leva a sério demais para conclamar o que deve ou não ser comemorado. Celebra quem pode, lamuria-se quem quer. Como já dizia aquele funk na década passada, “deixa os garotos brincar”.

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