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Como a caça às bruxas começou — e por que demorou séculos para acabar

Quatro séculos atrás, uma epidemia de medo tomou conta da Europa e chegou até as Américas. Entenda as raízes do fenômeno que torturou e matou milhares de pessoas acusadas de um crime imaginário.

Por Maria Clara Rossini
19 nov 2025, 12h00
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m Edimburgo, lojas de bruxaria são como farmácias no Brasil: tem uma a cada esquina. Lá se vendem velas, livros de ocultismo, incensos superfaturados, pelúcias de gatos pretos e umas 20 versões de baralhos de tarô.

O turismo da capital escocesa está intimamente ligado às bruxas, com ruas que inspiraram a autora de Harry Potter até passeios noturnos que contam a história de cidadãos acusados de bruxaria no início do século 17. O rei Jaime VI, que governou a Escócia entre 1567 e 1625, foi o monarca que mais se envolveu com a perseguição às feiticeiras hereges. No Castelo de Edimburgo, no centro da cidade, mais de 300 supostas bruxas foram enforcadas ou queimadas ao longo deseu reinado.

Durante 200 anos, países como Escócia, Alemanha, Suíça e França compartilharam de um profundo medo de bruxas. Estima-se que esse pânico tenha resultado na morte de 40 mil a 60 mil pessoas nos séculos 16 e 17, condenadas por um crime que não existe (1). Os julgamentos eram sérios, conduzidos por juízes renomados, com o aval da Igreja e do Estado, e apoiados pela população.

A caça às bruxas está longe de ser apenas um surto coletivo. Foi um fenômeno organizado, contando com um arcabouço legal e teológico que permitiu as condenações – por mais absurdas que fossem. Vamos entender por quê.

Ilustração, em fundo creme, de um julgamento de uma mulher acusada de feitiçaria. Vê-se um homem gritando e apontando para um livro.
(Gustavo Magalhães/Superinteressante)

E lá vamos nós

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Feitiçaria não é um conceito estranho a culturas ancestrais. A ideia de usar magia para controlar o clima, curar doenças ou promover uma boa caçada está presente em diferentes povos, com suas devidas adaptações locais. 

A prática costuma estar relacionada à religião, podendo ser usada tanto para o bem quanto para o mal. Essa representação está em uma das histórias escritas mais antigas do Ocidente: a feiticeira Circe, na Odisseia de Homero (século 8 a.C.), que transforma homens em animais.

Já o conceito da bruxa em si tem local e data de nascimento (um pouco) mais precisos: Europa medieval, quando o cristianismo já estava bem estabelecido. A inspiração vem de elementos da religião greco-romana, como as lâmias (criaturas femininas que se alimentam de homens e crianças), as harpias (mulheres-aves que voam) e até os bacanais (festas orgiásticas dedicadas ao deus Baco). As orgias, como você verá, são uma característica indispensável das bruxas.

A musa das bruxas foi Diana, deusa da caça e da Lua na mitologia romana. Assim como as feiticeiras medievais, ela está associada à natureza e a caçadas noturnas. É uma deusa que se apresenta em três formas – uma delas é Hécate, deusa da magia, das ervas e do submundo. Mais bruxa, impossível.

Então, afinal: como todas essas inspirações greco-romanas acabaram em um caldeirão e deram origem à bruxa que conhecemos? Um ponto-chave dessa história foi a criação e a consolidação do Diabo.

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Em muitas doutrinas antigas, o bem e o mal eram faces da mesma moeda. Poseidon, deus grego dos mares, poderia abençoar ou amaldiçoar os navegantes, a depender do seu humor (e das oferendas concedidas a ele). As religiões monoteístas, por outro lado, separaram esses conceitos em duas entidades distintas. 

A primeira fé monoteísta de que se tem registro foi o zoroastrismo, que surgiu na Pérsia  (atual Irã) há mais de 3,5 mil anos. Ele introduziu os conceitos de céu e inferno (“paraíso” é uma palavra de origem persa, por exemplo), de anjos e demônios e do dia do julgamento  final – ideias que, muitos séculos mais tarde, inspirariam as bases do cristianismo. 

A separação entre o bem e o mal fez surgir (na visão religiosa, é claro) uma figura diretamente oposta a Deus – e, junto, a possibilidade de criar pactos com ela. As bruxas, então, seriam pessoas que selaram esse acordo por conta própria, usando a magia para servirao tinhoso.

“A melhor maneira de entender a crença em bruxas é como um texto que foi apagado e reescrito no mesmo papel”, diz Mikki Brock, historiadora especialista em caça às bruxas. “É o empilhamento de ideias. Uma combinação de crenças clássicas com folclore, interpretações teológicase eventos vividos.”

Nos séculos seguintes ao início do cristianismo, construiu-se a ideia de bruxaria como uma interpretação de tradições e histórias pagãs ao olhar da Igreja. Quem estivesse cultuando outras entidades estaria, na visão cristã, relacionando-se com demônios. Simples assim.

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Preparando o terreno

A caça às bruxas, vale dizer, não ocorreu na Idade Média (século 5 ao século 15). Essa época, no entanto, estabeleceu algumas das bases para que a perseguição atingisse o auge na Idade Moderna.

A primeira delas foi um documento chamado Canon Episcopi, que se tornou lei da Igreja em 1140. Ele diz que algumas mulheres acreditavam estar cavalgando à noite com a deusa pagã Diana (olha ela aí!), juntando-se em grupos femininos na floresta. Segundo o texto, esses devaneios eram induzidos pelo Diabo, que queria afastar as mulheres de Deus e do cristianismo. A crença nessas visões eraconsiderada heresia.

Em 1252, o papa Inocêncio IV (que de inocente não tinha nada) autorizou o confisco de bens, a prisão e a tortura de pessoas suspeitas de heresia. Foi a bola levantada que o papa seguinte, Alexandre IV, precisava para dar o corte: Alexandre decretou que a feitiçaria poderia ser julgada junto com a heresia.

No século 14, o cenário já estava montado para a perseguição. Na época, crescia uma vertente da Igreja que acreditava que as tais “cavalgadas noturnas” não eram imaginárias, mas sim uma bruxaria real – e que precisava ser combatida. Em 1484, o papa Inocêncio VIII publicou o Summis Desiderantes Affectibus, documento que legitima os inquisidores para julgarem as bruxas.

O Summis é resultado das denúncias do frade Heinrich Kramer, um inquisidor ferrenho tão obcecado por bruxas quanto o Sr. Crocker é obcecado por fadas em Os Padrinhos Mágicos. Kramer é autor do principal guia de caça às bruxas: Malleus Maleficarum (“O Martelodas Feiticeiras”).

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Publicado em 1486, a primeira parte do Malleus apresenta argumentos teológicos da existência da bruxaria. A segunda traz exemplos práticos (com descrições pornográficas) das ações das bruxas. A terceira e última parte descreve como um julgamento de bruxaria deveria ser conduzido, quais aspectos observar e como usar tortura para interrogar as suspeitas.

Ilustração, em fundo creme, de um mapa da Europa, com os países onde ocorreram o maior número de julgamentos de bruxas.
(Gustavo Magalhães/Superinteressante)

A bruxa tá solta

Qualquer cidadão europeu dos séculos 16 e 17 descreveria uma bruxa da mesma forma: uma pessoa, geralmente mulher, que fez um pacto com o Diabo. Ela voava à noite em direção à floresta para participar de encontros com outras bruxas (os sabás). O segredo da levitação era uma pomada que elas passavam em vassouras e nopróprio corpo. 

Ao chegarem à floresta, elas davam início ao sabá: matavam e comiam crianças, faziam sexo com Satã (e entre si) e renunciavam à fé cristã, às vezes usando crucifixos como sapato ou defecando em cima da hóstia.

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A cena deixaria qualquer vovó de cabelos em pé. Algo assim nunca aconteceu, claro – mas era o que se pensava que ocorria na mata. Boa parte desse imaginário vem do Malleus, que teve 28 edições em apenas 100 anos – um best-seller.

O livro argumenta que as mulheres são mais suscetíveis a fazer o pacto com o Diabo por serem fracas, carnais e estúpidas. Caíam facilmente em tentação. O discurso misógino dá respaldo para as acusações direcionadas a elas: 80% das pessoas julgadas por bruxaria na Europa foram mulheres (a porcentagem varia dependendo da região; em alguns países, como a Rússia, houve mais homens condenados pelo crime do que mulheres).

Embora já houvesse julgamentos por bruxaria antes, a situação estourou na metade do século 16, com o início da Reforma Protestante. Em suas 95 teses publicadas em 1517, Martinho Lutero critica a Igreja Católica, mas não se opõe à perseguição às bruxas. Pelo contrário: os protestantes foram até mais engajados em eliminar as bruxas do que os católicos. 

Apesar da cisão da Reforma, havia um certo pacto de não agressão em relação às bruxas. “Os católicos não acusavam os protestantes de bruxaria, e vice-versa. As perseguições ocorriam dentro das próprias religiões”, diz Brock. “É como se estivessem limpando a casa, garantindo que nenhum descrente, bruxa ou transgressor fizesse parte da comunidade.” 

Os julgamentos católicos eram conduzidos pela Inquisição. Entre os protestantes, não havia uma única instituição responsável – os casos costumavam ser julgados por juízes independentes. A perseguição era mais intensa em locais que sofriam com a fome, a peste e as intempéries climáticas. O motivo de tanta desgraça, para eles, só podia ser feitiçaria.

As acusações geralmente estavam relacionadas à esfera doméstica e do campo: a vizinha que botou uma praga na plantação; a senhora que deixou a criança doente; a moça que matou a vaca de outro aldeão. Bastava um olhar mal-encarado ou xingamento para ser tachada de bruxa. 

Essas mulheres eram cidadãs comuns, sem grande status social ou econômico. Havia uma tendência a acusar mulheres de meia-idade ou idosas. “Elas tinham mais sabedoria, e acreditava-seque elas não deveriam possuí-la. Aos olhos da população, elas teriam inveja da fertilidade das mais jovens, o que é um motivo para elas terem sido as mais atacadas”, diz a historiadora.

Havia meios curiosos de testar se alguém era culpado. Um deles era jogar a acusada num lago: se afundasse, era inocente; se flutuasse, era bruxa. A lógica era que a água seria uma criação divina, que rejeitaria alguém que fez um pacto com o Diabo. O problema: uma vez confirmado o afundamento, era preciso agir rápido para que um inocente não se afogasse. 

Uma das primeiras cidades em que o pânico se instaurou foi Trier, na atual Alemanha. Como em toda a Europa, as suspeitas de bruxaria que negavam as acusações apanhavam. Ao cederem à pressão, eram obrigadas a falar quais outras mulheres participavam do sabá, criando um ciclo de denúncias infundadas motivadas pela tortura.

Em Trier, boa parte das acusações foi feita por Dietrich Flade, um dono de terras importante que entra para a lista dos homens obcecados por bruxas. Até que o feitiço virou contra o feiticeiro e ele mesmo foi acusado de bruxaria. Após sessões de tortura, ele admitiu participar dos sabás e morreu enforcado.

Ilustração, em fundo creme, de uma mulher carregando uma cesta e colhendo margaridas. Ao fundo, vê-se, trabalhadores rurais.
(Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Ao contrário do que se imagina, as bruxas raramente eram queimadas vivas. Elas quase sempre morriam enforcadas – a morte rápida era um suposto ato de misericórdia. O corpo ia para a fogueira em seguida. O objetivo era evitar que o Diabo continuasse a agir por meio do cadáver.

Na época, os territórios de Alemanha, Áustria e Suíça faziam parte do Sacro Império Romano--Germânico. Essa foi a região com o maior número de julgamentos e mortes por bruxaria, com uma estimativa de 20 mil a 25 mil execuções (2). A imprensa ajudou a espalhar o pânico para diversos países da Europa, publicando até ilustrações dos supostos sabás. 

Fora do Império, um dos locais mais impactados foi a Escócia. O rei Jaime VI acreditava que as bruxas haviam sido responsáveis por uma tempestade intensa que quase o matou numa viagem de navio. Ele intensificou a caça e se tornou o único monarca da História a publicar um tratado sobre bruxaria,o Daemonologie

A situação piorou quando o monarca assumiu o trono da Inglaterra e Irlanda, sob o nome Jaime I. Ele espalhou suas ideias por toda a Grã-Bretanha, resultando em 4,8 mil julgamentos e 3 mil execuções (2). Jaime também encomendou uma nova tradução da Bíblia em inglês, substituindo o termo “feiticeiro”por “bruxa” (3).

Em terras britânicas, era comum cutucar as acusadas com uma agulha, em busca da “marca do Diabo” – um local do corpo que, quando perfurado, não causaria dor. Os inquisidores também buscavam pela “teta da bruxa”, um suposto mamilo (que na prática podia ser uma pinta) por onde acreditava-se que as bruxas alimentavam seus familiares com o próprio sangue.

Os familiares (ou imps, em inglês) não eram parentes, e sim pequenos demônios que ajudavam as bruxas – e com quem elas (também) copulavam. Acreditava-se que eles assumiam a forma de bestas ou animais. Essa ideia foi provavelmente inspirada pelos gnomos e duendes do folclore celta. O gato preto da bruxa é um tipo de imp

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O saldo do período de caça às bruxas foi de 110 mil julgamentos na Europa (1). A poeira começou a baixar na segunda metade do século 17. Curiosamente, a principal causa não foi a ascensão do pensamento científico, mas o aumento do ceticismo entre os próprios juristas e teólogos. 

Os juristas começaram a se questionar se torturar pessoas era uma maneira confiável de obter informações (spoiler: não era). Já os teólogos diziam que a obsessão pelas bruxas colocava o Diabo no foco das discussões e distanciava as pessoas de Deus.

A expansão do Iluminismo, entre o final do século 17 e o início do século 18, também foi essencial para que os países revissem sua legislação sobre o tema. À época da última execução por bruxaria na Europa, em 1782, a condenação já era vista pela população como um absurdo. 

Talvez você tenha chegado até aqui sentindo falta de um capítulo nessa história. A caça às bruxas foi um fenômeno majoritariamente europeu, mas não significa que não tenha respingado em outros locais. Vamos saber agora o que aconteceu nas Américas – e na cidade de bruxaria mais famosa de todas.

Gráfico, em fundo creme, com a linha do tempo (1300 – 1850) mostrando o número de julgamentos e execuções documentados em registros históricos.
(Arte/Superinteressante)

Bem-vindo a Salém

A vila de Salém, em Massachusetts (EUA), foi um ponto fora da curva. Apesar da fama, lá ocorreram poucas execuções em comparação com as cidades europeias – só 19. A crença em bruxas foi importada pelos colonos ingleses, mas com atraso. Os julgamentos de Salém ocorreram em 1692, depois que o auge europeu já havia passado.

Tudo começou com duas meninas brincando de adivinhação para descobrir com quem iam casar. As crianças adoeceram pouco tempo depois, e o médico que as examinou cometeu o infeliz erro de dizer que elas estavam enfeitiçadas por bruxas. 

O pastor Samuel Parris, pai de uma das meninas, começou a acusar mulheres da comunidade. A melhora no estado de saúde das crianças era vista como sinalde que os julgamentosestavam funcionando.

Outros julgamentos ocorreram nas colônias inglesas, espanholas e até portuguesas. Pois é: no Brasil, a Inquisição portuguesa usava o termo “feitiçaria”, e as pessoas mais acusadas foram mulheres negras de religiões de matriz africana – uma heresia, aos olhos da Igreja. A Inquisição fez três visitas ao Brasil, em que reuniram acusados para serem julgados em Lisboa. O número de “feiticeiras” brasileiras acusadas é incerto.

Tanto no Brasil quanto na Europa, a bruxaria foi a forma que alguns cristãos encontraram para lidar com crenças e tradições díspares – enquadrando-as como crime. Dessa forma, as bruxas eram uma ameaça tão real quanto as doenças e a fome.

“As pessoas envolvidas na caça realmente acreditavam que bruxas eram reais, numerosas, letais e precisavam ser mortas”, diz Mikki Brock. “É claro que há misoginia e um contexto patriarcal na época, mas é importante levar a sério aquilo de que as pessoastêm medo.”

A situação não parece ter mudado muito ao longo dos séculos. O medo de conspirações ocultas continua vivo – só mudaram os alvos: judeus e comunistas no século 20; imigrantes e pessoas LGBTQIA+ hoje. 

Tratar a caça às bruxas como um simples surto coletivo é ignorar sua lógica interna e suas raízes sociais. Como resume o historiador Jeffrey B. Russell, no livro História da Bruxaria: “Talvez estejamos formulando as indagações erradas quando perguntamos como isso pôde ter acontecido […] A verdadeira indagação a ser feita é por que ocorrem períodos derelativa sanidade”. 

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Referências: (1) livro The witch-hunt in early modern Europe, de Brian P. Levack; (2) livro The witchcraft sourcebook, de Brian P. Levack; (3) King James Bible.

Fontes: livro História da bruxaria, de Jeffrey B. Russell e Alexander Brooks; Lina Gorenstein, historiadora especialista em inquisição portuguesa.

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