Mito: “O golpe de 1964 foi idealizado pelos EUA”
A verdade: americanos ajudaram os conspiradores, mas os autores e atores do golpe foram brasileiros.
Em junho de 1962, o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, reuniu-se com o presidente John Kennedy para discutir a situação política brasileira. A Casa Branca tinha acabado de instalar um sistema de gravação clandestina no Salão Oval, e a primeira conversa interceptada colocava Jango na berlinda. “Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em fortalecer a espinha militar. Ele está entregando o país aos…”, disse Gordon, ao que Kennedy completou: “aos comunistas”.
Essa era uma virada na relação dos EUA com o Brasil. Até a década de 1950, as grandes preocupações dos EUA estavam longe da América Latina. A URSS desenvolvia a largos passos seu programa balístico e espacial; a CIA orquestrava um golpe no Irã (1953); o exército americano entrava na Guerra da Coreia (1950-53); o Egito nacionalizava o Canal de Suez (1956), e o Vietnã do Norte ameaçava expandir o comunismo no Sudeste Asiático.
Mas o ano de 1961 trouxe as atenções dos EUA para cá. Em 1959, Fidel Castro venceu a Revolução Cubana. O movimento causava preocupação por causa de investimentos americanos na ilha, mas não chegava a ser uma grande ameaça geopolítica. Fidel ainda não tinha se convertido ao comunismo. Era apenas um líder nacionalista que derrubara o ditador Fulgêncio Batista (1952-1959). Chegou mesmo a posar para foto com o então vice-presidente Richard Nixon, numa viagem aos EUA, quatro meses depois da revolução.
Apesar de todo o poderio militar mobilizado pelos EUA, nenhum brasileiro, civil ou militar, participou da deposição porque os EUA a desejavam.
Elio Gaspari, jornalista
Isso mudou quando Fidel nacionalizou propriedades americanas em Cuba. Em reação, os EUA recrutaram cubanos em Miami para invadir Cuba pela Baía dos Porcos. A invasão fracassou, e levou Cuba a buscar proteção do único rival militar dos EUA. Foi assim que Cuba se tornou um satélite soviético a pouco mais de 100 km da Flórida.
A partir da guinada comunista de Cuba, qualquer movimentação de esquerda na América Latina passou a soar o alarme em Washington. Isso incluía Jango, que, segundo os temores dos EUA, perigava de instaurar “ditadura pessoal e populista”. Os sinais pareciam claros. Já em 1959, Brizola encampara as companhias americanas ITT e Bond and Share no Rio Grande do Sul. Agora, Jango defendia o controle de remessas de lucros ao exterior e a nacionalização de refinarias estrangeiras. No topo disso, tinha o apoio de movimentos sociais camponês, operário e estudantil e de militares rebeldes de baixa patente.
Por tudo isso, é tentador afirmar que o golpe foi orquestrado pelo governo americano. Mas quem geriu a conspiração contra Jango não foram os EUA. Foram civis e militares brasileiros que desde os tempos de Getúlio combatiam o que chamavam “populismo”. “Nem as direitas eram manipuladas pelo imperialismo norte-americano, nem as esquerdas, pelo ouro ou pelo dedo de Moscou”, escreve o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis, da UFF. “Jargões de época, de considerável eficácia propagandística, não dão conta da autonomia política de que dispunham as forças antagônicas.”
O professor de história americana da USP Sean Purdy tem uma avaliação semelhante. “Nenhum golpe apoiado pelos americanos teria acontecido sem que o País tivesse forças internas para articulá-lo. Os EUA têm a sua culpa, mas, também no caso do Brasil, havia parte da sociedade que apoiava a derrubada do governo.”
Dizer que os atores do golpe foram nacionais, claro, não significa ignorar a simpatia com que os americanos viam os conspiradores [leia abaixo]. Eles bancaram projetos de desenvolvimento em Estados governados por opositores de Jango, acenaram apoio a qualquer golpe que derrubasse esquerdistas, financiaram o complexo Ipês-Ibad, mantiveram um intercâmbio militar e prepararam uma megaoperação de apoio ao golpe – que acabou não sendo posta em prática porque os generais brasileiros derrubaram Jango antes mesmo do previsto.
Assim, a ajuda americana acabou não sendo decisiva para o golpe. Mas, se os quartéis não tivessem conseguido derrubar Jango por conta própria, já tinham um irmão com quem contar. Dificilmente o falcão do Norte apreciaria que a crise do governo Goulart continuasse a se agravar. Afinal, como o presidente americano Nixon diria mais tarde para o general Médici, numa visita oficial aos EUA em 1971, “para onde o Brasil for, o resto da América Latina irá”.
O falcão, a onça e as vivandeiras
Os EUA não derrubaram Jango, mas foram generosos com os conspiradores civis e militares
Aliança para o Progresso
Nesse programa de ajuda externa, Kennedy presenteava governos latino-americanos anticomunistas com hospitais, escolas e conjuntos habitacionais. Assim, esperava neutralizar o apelo revolucionário de Cuba na região. A Aliança para o Progresso beneficiou governadores estaduais oposicionistas, como Carlos Lacerda (Guanabara), Luís Magalhães Pinto (MG) e Ademar de Barros (SP). Já o governo de Jango ficou de fora.
Apoio automático
Em março de 1964, o coordenador da Aliança para o Progresso, Thomas C. Mann, reuniu-se com todas as autoridades do governo americano envolvidas com América Latina. Do encontro saiu a Doutrina Mann: os EUA apoiariam qualquer governo, desde que fosse anticomunista. O New York Times questionou se a doutrina não seria carta branca para militares golpistas. Mann respondeu: “cada caso é um caso”.
Operação Brother Sam
Os EUA nunca intervieram militarmente no Brasil, mas chegaram a preparar uma operação de apoio, caso os golpistas tivessem dificuldades. Mobilizaram no Caribe um porta-aviões, um porta-helicópteros, tropas de paraquedistas, seis contratorpedeiros com cerca de 100 toneladas de armas e quatro petroleiros. A estrutura chegaria à costa sudeste brasileira entre 8 e 13 de abril. Só que os militares anteciparam o golpe em uma semana, e a operação foi abortada.
Financiamento à oposição
Em 1962, o embaixador Lincoln Gordon e o presidente Kennedy concordaram em não derrubar Jango – mas, por via das dúvidas, mantiveram a carta golpista no baralho. O ano era de eleições legislativas, e os americanos liberaram uma enxurrada de dólares para políticos brasileiros de oposição. A verba teria ajudado mais de 200 candidatos ao Senado, Câmara Federal e Assembleias Estaduais.
Intercâmbio militar
Militares brasileiros e americanos iniciaram um convívio próximo ainda em 1944, quando o Brasil enviou a Força Expedicionária à Itália. Centenas foram estudar na Escola das Américas, centro de treinamento dos EUA no Panamá, e no National War College. Em 1962, os EUA enviaram ao Rio como adido militar Vernon Walters, veterano da 2ª Guerra, que chegou a dividir quarto com o futuro presidente Castelo Branco.
Propaganda
Os EUA foram financiadores de primeira ordem do complexo oposicionista Ipês-Ibad, que produzia propaganda anticomunista e contra Jango no rádio, na TV, no cinema e na imprensa. Também distribuía livros para oficiais e projetava filmes doutrinadores em quartéis, bases, escolas e navios. Só em 1963, foram realizadas 1.706 projeções.
Este post é parte do dossiê “21 mitos sobre a Ditadura Militar”, que pode ser lido na íntegra aqui.