Os planos mirabolantes para preservar a múmia de Lênin, que faz 100 anos
Em 1924, o cadáver gerou uma briga peculiar no Kremlim: havia quem quisesse mantê-lo congelado, submerso num líquido translúcido e até selado em nitrogênio.
Em 21 de janeiro de 1924, após 53 anos de vida, três derrames e consultas com 26 médicos diferentes, Vladmir Lênin morreu. Um de seus últimos pitacos na política soviética foi que Stálin não assumisse o comando da URSS – ele o considerava rude e autoritário demais para o cargo.
O funeral atraiu 1 milhão de pessoas ao longo de três dias. Depois, após uma longa discussão – o frio do inverno ajudou a preservar o corpo nesse interim –, as lideranças soviéticas decidiram embalsamá-lo e mantê-lo exposto temporariamente em um mausoléu na Praça Vermelha.
A solução provisória se tornaria permanente (bem como o mausoléu, que originalmente era de madeira, mas passou a ser um edifício). Os órgãos internos foram removidos; o resultado da autópsia do cérebro é motivo de debate até hoje – ele pode ter tido arteroesclerose, neurossífilis e até uma doença genética.
A morte política de Lênin havia começado antes. Em seus últimos anos de vida, já debilitado, ele foi afastado do dia-a-dia da administração da URSS. Seus aliados passaram a ignorar suas ideias novas, suas alterações em textos antigos e suas considerações sobre o futuro do país – prova disso é que Stálin assumiu o poder.
Lênin foi transformado uma doutrina que não necessariamente refletia suas ideias, o Lenilismo. Em 1924, Trotsky expressou a preocupação de que o Leninismo tinha pouco a ver com Lênin e corria o risco de se tornar uma coleção de citações vazias, usadas fora de contexto para legitimar qualquer decisão.
Os esforços de preservação de seu corpo tinham o mesmo objetivo: esvaziar Lênin de sua humanidade e torná-lo um ícone, uma estátua. Seu cadáver empregou dezenas de especialistas ao longo dos últimos cem anos e transformou a Rússia em algo insólito: a maior (quiçá única) potência científica na área de conservação de corpos.
No mínimo 77% da massa original do revolucionário já foi substituída por substâncias inorgânicas de vários tipos. O grosso dessa porcentagem, é claro, equivale ao conteúdo de água médio no recheio de um ser humano – algo entre 60% e 70%. Mas não só: o nariz foi reconstruído, os globos oculares são falsos e até os cílios precisaram ser trocados.
O historiador Alexei Yurchak da Universidade da Califórnia, que é um especialista na morte de Lênin, explica que seu corpo embalsamado é um caso único na história de múmias, relíquias e afins, porque o objetivo era manter sua aparência e suas feições intactas, ainda que não restasse nada da carne e da pele reais.
No ideário católico, por exemplo, é fundamental para santidade de uma relíquia que o pedaço em questão de fato tenha sido retirado do corpo de um santo, ou que se trate de um objeto que realmente pertenceu a um santo. Autenticidade é essencial, não vale distribuir pedaços da cruz de Cristo se eles forem réplicas.
Lênin é o contrário disso. Resta tão pouco de sua matéria orgânica original que ele já é algo mais próximo de uma réplica.
O corpo em si não é motivo de admiração (até porque a doutrina marxista-leninista é materialista e ateia). A ideia, ao preservá-lo, é que ele funcionasse mais como uma estátua ultrarrealista, que permitisse o culto à imagem.
Lênin preserva, até hoje, a aparência de uma pessoal saudável e corada. Sua pele tem uma elasticidade bastante convincente e suas juntas permanecem flexíveis. A gordura natural do corpo, que em um cadáver normal passa por um processo de liquefação chamado hidrólise, foi substituída por uma substância inorgânica capaz de manter a forma do corpo inalterada, aplicada com microinjeções.
Lênin, em suma, é um boneco. Vamos entender como os soviéticos chegaram a decisão de mantê-lo assim.
Conversa mórbida
Em 5 de março de 1924, rolou uma reunião peculiar da Comissão para Organização do Funeral de Lênin. Ela é narrada detalhadamente neste artigo escrito por Yurchak.
Leonind Krasin, um engenheiro, sugeriu uma grande caixa de metal com tampa de vidro, preenchida com algum líquido absolutamente transparente que fosse capaz de preservar o corpo e, ao mesmo tempo, mantê-lo vísivel ao público.
Felix Dzerzhinsky, que liderava a comissão do funeral e era chefe do serviço secreto soviético (na época chamado OGPU, depois rebatizado com a famosa sigla KGB), rechaçou a ideia de mantê-lo em um tanque “como um pedaço de carne morta”, e defendeu congelar Lênin.
Um pesquisador chamado Grigory Belen’ky comentou que o congelamento tampouco era uma boa solução, porque a manutenção é dificílima: o corpo adquire uma coloração preta quando há qualquer mudança sutil de temperatura.
Aventou-se, então, a possibilidade de mantê-lo selado em um recipiente com nitrogênio. O argumento é que, sem oxigênio, não haveria proliferação de bactérias e outros micróbios decompositores. Logo o comitê se lembrou, porém, de que existem seres vivos anaeróbios, cujo metabolismo não depende da respiração.
Então, Kliment Voroshilov, membro do Conselho Militar Revolucionário, sugeriu que não se fizesse nada com o corpo: ele seria mantido no bálsamo provisório e, quando começasse a apodrecer, seria enterrrado. “Se durar mais um ano, está bom o suficiente”.
De início, portanto, ninguém realmente tinha a intenção de preservar Lênin para sempre. Foi só no final de março que se chegou a um consenso, após uma série de discussões meio tedioosas, meio absurdas (o comitê original se desmembrou em dois comitês, um favorável e um contrário à preservação do corpo por tempo indeterminado).
Ficou decidido que o professor de medicina Vladimir Vorobiev e o bioquímico Boris Zbarsky poderiam embalsamar o corpo usando um método novo e inventado especificamente para Lênin. A dupla trabalhou por nove meses, e foi bem-sucedida.
Até hoje, a lista de procedimentos a que o corpo precisa ser submetido envolve tarefas com diferentes periodicidades. Algumas são diárias, outras são semanais, algumas levam dois meses e são realizadas uma vez a cada dois anos, aproximadamente. A maior parte foi aperfeiçoada em relação ao método original de Vorobiev e Zbarsky.
A declaração oficial, lida ainda em 1924, reforça que o objetivo era manter a aparência, e não a matéria viva.
“Nós não queremos transformar o corpo de Vladimir Ilyich em um tipo de relíquia. (…) Ele já se imortalizou o suficiente com seus ensinamentos brilhantes e sua atividade revolucionária. Nós queremos preservá-lo porque é de grande importância manter a aparência física deste líder memorável para a próxima e as futuras gerações.”
O cientista político Ken Jowitt argumenta que a transformação de Lênin em uma ideia tornou a URSS uma ditadura única dentre as várias do século 20, porque ela girava não em torno de uma pessoa, mas de uma organização burocrática (o partido) e suas prescrições (o Lenilismo). Até Stálin, centralizador, cruel e autoritário como era, morreu criticado por incentivar o culto à própria personalidade.
O corpo que jaz na Praça Vermelha, portanto, não é um corpo. Está mais para uma escultura macábra, talhada na fronteira da arte com a biologia. Um destino estranhamente adequado para alguém que, ainda vivo, perdeu o status de pessoa e renasceu como ideia.