Quando os hominídeos chegaram ao topo da cadeia alimentar? Novo estudo fornece pistas
Fósseis de quase 2 milhões de anos indicam que o Homo habilis, um dos primeiros humanos, ainda perdia para os leopardos no combate

Durante décadas, o Homo habilis foi retratado como um marco da evolução humana. Essa espécie, que viveu há quase 2 milhões de anos no leste da África, teria sido responsável pela criação das primeiras ferramentas de pedra – conhecidas como “Kit de Ferramentas Oldowan” – e pela virada crucial na relação entre humanos e animais: de presa a predador.
Mas novas evidências indicam que essa narrativa pode ter sido precipitada. Em vez de caçadores dominantes, os primeiros representantes do nosso gênero podem ter terminado muitas vezes nas garras de leopardos.
Pesquisadores da Universidade de Alcalá, na Espanha, revisitaram fósseis históricos encontrados no Desfiladeiro de Olduvai, na Tanzânia, onde foram descobertos alguns dos principais vestígios do Homo habilis. Entre eles estão dois indivíduos conhecidos como OH 7 (um juvenil encontrado em 1960) e OH 65 (um adulto descoberto em 1995).
Ambos apresentam marcas de dentes em seus ossos, que há décadas geram debate entre especialistas. Muitos acreditavam que se tratava de sinais de hienas se alimentando de cadáveres já mortos.
Para resolver a questão, os cientistas recorreram à inteligência artificial. Eles criaram uma base com 1.496 imagens de marcas de mordidas feitas por diferentes carnívoros modernos – leões, leopardos, hienas, crocodilos e lobos – e treinaram algoritmos capazes de reconhecer padrões microscópicos.
Quando aplicaram esse sistema aos fósseis de Homo habilis, a resposta foi clara: com mais de 90% de probabilidade, as marcas vieram de leopardos.
No caso do espécime OH 7, as marcas estavam na mandíbula e mostravam a típica cavidade triangular deixada pelos dentes desses felinos. Segundo o estudo, publicado nos Annals of the New York Academy of Sciences, a extensão do dano indica que o animal não apenas roeu restos, mas caçou e matou o hominídeo. O mesmo padrão foi encontrado no maxilar do OH 65.
“Há algum tempo temos retratado o Homo habilis como o primeiro conquistador da pirâmide trófica, afastando os carnívoros de suas presas. Mas identificamos que esses espécimes foram de fato comidos por leopardos da mesma forma que os australopitecos anteriores”, disse Manuel Domínguez-Rodrigo, um dos autores do estudo, à IFLScience.
Se confirmada em escala populacional, essa evidência coloca o Homo habilis não como predador dominante, mas como presa vulnerável, incapaz de competir com felinos de porte médio.
Isso também levanta dúvidas sobre a autoria das ferramentas de pedra encontradas em Olduvai. Talvez o verdadeiro criador do Kit Oldowan tenha sido o Homo erectus, espécie mais robusta e adaptada, que viveu na mesma época e região.
Já havia controvérsias sobre se o cérebro pequeno e a anatomia primitiva do Homo habilis eram compatíveis com o comportamento de um caçador de animais de médio porte. O novo estudo reforça a visão de que ele ainda mantinha hábitos parcialmente arborícolas (vivia em árvores) e um corpo mais próximo dos australopitecos, necessitando escapar dos predadores em vez de enfrentá-los.
O uso da inteligência artificial também foi crucial para esse avanço. Segundo os autores, as técnicas de visão computacional permitem distinguir com precisão marcas de diferentes espécies de carnívoros, o que até então dependia de interpretações humanas muitas vezes divergentes. Isso pode abrir caminho para revisões em outros fósseis do registro arqueológico.
Embora os resultados envolvam apenas dois indivíduos, os pesquisadores defendem que, se eles forem representativos da população de Homo habilis em Olduvai, significa que essa espécie não conseguiu lidar com os riscos impostos por leopardos. Isso sugere que a verdadeira transição para o topo da cadeia alimentar aconteceu mais tarde, provavelmente com o Homo erectus.