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AIDS, Um inimigo na intimidade

Nunca antes se aprendeu tanto sobre uma doença em tão pouco tempo, como no caso da AIDS. Isso torna possível controlar a sua propagação, mas ainda não permite pensar em cura

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h38 - Publicado em 31 dez 1988, 22h00

A AIDS provocou uma reviravolta em muitos dos conceitos mais otimistas da Medicina. De fato, com a descoberta dos antibióticos na década de 40, os médicos puderam pela primeira vez intervir no curso das doenças. O então novo medicamento tornava possível matar o agente infeccioso depois de ter ele invadido o paciente. Chegou–se a pensar que os antibióticos, junto com as vacinas, fariam desaparecer da face da Terra as doenças infectoparasitárias — aquelas causadas por vírus, fungos, bactérias, protozoários ou vermes. Mas o aparecimento da AIDS mudou todas as expectativas.

Com ela surgira algo inimaginável: uma nova e desconhecida doença. Desde que os primeiros casos foram relatados há sete anos nos Estados Unidos, calcula–se o número total de vítimas em 300 mil em todo o mundo, mas supõe–se que haja até 10 milhões de pessoas contaminadas. Estima-se que a AIDS já matou entre 50 mil e 120 mil pessoas. O alarme soou pela primeira vez no Centro de Controle das Doenças (CDC), em Atlanta, Estados Unidos, quando nos oito meses anteriores a junho de 1981, cinco casos de pneumonia causada por protozoário — o Pneumocystis carinii — foram relatados, todos na região de Los Angeles.

Só para se ter idéia da surpresa que isso causou, entre novembro de 1967 e dezembro de 1979 apenas dois casos dessa pneumonia haviam aparecido em todo o país. Ela ocorre quando o sistema imunológico de um paciente está profundamente afetado pelo câncer ou por potentes medicamentos que se destinam justamente a enfraquecer as defesas naturais do organismo. É a chamada infecção oportunista. Todos aqueles cinco novos casos, no entanto, haviam ocorrido em jovens homossexuais, cujos sistemas imunológicos não tinham motivo aparente para ter deixado de funcionar.

Na mesma época, o CDC começou a receber informes de uma série de patologias inesperadas em pacientes homossexuais: o sarcoma de Kaposi (um tipo de câncer), aumento dos gânglios linfáticos, linfoma (câncer dos glóbulos brancos) e outros. Mais uma vez, a única ligação entre os novos casos era o fato de que algo estava deixando em frangalhos o sistema imunológico dessas pessoas. Os achados clínicos eram consistentes o bastante para poderem ser reunidos numa síndrome (conjunto de sinais e sintomas que identificam uma doença) inteiramente nova.

Os primeiros estudos indicaram que a principal característica dos homossexuais afetados pela doença era o número elevado de parceiros sexuais — entre 60 e 80 por ano. Logo, a transmissão deveria se dar pelo ato sexual. Foi quando surgiram os primeiros casos entre os hemofílicos — que recebem regularmente um grande número de transfusões sanguíneas. Em dezembro de 1982, o número de homens e mulheres homossexuais contaminados correspondia a 20 por cento dos casos. Isto fez com que fosse reconhecida a via sanguínea de transmissão e que a doença passasse a ser chamada AIDS ( Síndrome da Imunodeficiência Adquirida ).

Tornava-se cada vez mais claro que a causa da AIDS era um agente infeccioso, provavelmente um vírus. Esta hipótese foi confirmada em 1983, quando as equipes de Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, em Paris, e de Robert Gallo, do Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, conseguiram isolar o vírus, chamado pelo francês de LAV e pelo americano de HTLV-III, e que mais tarde teve a nomenclatura unificada para HIV (Human Immunodeficiency Virus). Logo chamou a atenção dos pesquisadores o fato de a AIDS ser causada por um retrovírus. Como todos os vírus, os retrovírus precisam utilizar a matéria-prima existente no interior da célula para se reproduzir.

Mas possuem uma característica que os diferencia dos demais: normalmente, no interior do núcleo celular, o DNA, a molécula responsável pela hereditariedade, informa outra substância, o RNA, como fabricar proteínas; os retrovírus, no entanto, produzem uma proteína que põe o processo de ponta-cabeça, fazendo com que seu próprio RNA modifique o DNA celular; este passa então a fabricar as proteínas necessárias para formar outros vírus. O DNA assim alterado pode permanecer incorporado ao material genético do hospedeiro de forma latente; até que seja ativado para produzir novos vírus.

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Duplicando-se de modo controlado, o vírus pode então viver muitos anos no interior das células, sem matá-las. Essa característica genética certamente surgiu como uma adaptação desenvolvida pelos retrovírus capazes de infeccionar uma espécie animal de maior longevidade — em relação aos demais mamíferos –, como o homem. Buscando os caminhos dessa adaptação, os pesquisadores passaram a estudar vírus semelhantes que pudessem infeccionar outros primatas. Dois anos após a descoberta dos primeiros retrovírus humanos, foi isolado um vírus em macacos — o SIV, Simian Immunodeficiency Virus –, em espécies asiáticas e africanas.

O macaco-verde da África revelou-se um verdadeiro reservatório natural do SIV. Embora 30 a 70 por cento dos animais estivessem contaminados, não ficavam doentes. Quando um macaco asiático foi colocado junto aos africanos, morreu de linfoma. Aparentemente, os macacos africanos desenvolveram um mecanismo que impede um vírus letal de causar a doença. Conhecer os mecanismos dessa imunidade seria um caminho para tentar reproduzi-la no caso da infecção pelo HIV. O SIV é um parente próximo do HIV, mas faltava um elo nessa cadeia evolutiva, um vírus intermediário. Tal vírus, se existisse, deveria ser encontrado em grupos de alto risco na África.

Um estudo realizado em prostitutas africanas — sujeitas às contaminações sexuais, já que homossexuais e viciados em drogas são raros no continente — revelou que 10 por cento delas, na África Ocidental, tinham anticorpos que reagiam tanto ao HIV como ao SIV, e até melhor com este último. O que sugeria haver ali uma infecção diferente da encontrada na Europa, nos Estados Unidos ou mesmo na África Central. Esse novo vírus, mais próximo ao SIV que ao HIV, foi chamado HIV-2. Ao que tudo indica, os indivíduos por ele contaminados não desenvolvem a AIDS. Ou o HIV-2 é antigo o suficiente para ter a virulência, ou é recente, e não houve tempo para que os infeccionados apresentassem a doença.

Mas como é possível detectar uma infecção num indivíduo aparentemente sadio? Os testes usados tanto nesse estudo como na prática diária servem para demonstrar a presença de anticorpos contra o HIV no sangue, confirmando o diagnóstico da AIDS nos pacientes, ou analisando o estoque de sangue usado nas transfusões. Esses testes serviram para confirmar a suspeita de que os casos clínicos de AIDS correspondem apenas a uma pequena fração do número total de pessoas infeccionadas. Logo após ter tido contato com o vírus, o indivíduo permanece sem apresentar sintomas durante seis meses a um ano.

Nessa fase, ainda não existem anticorpos presentes no sangue. É a chamada Fase zero — soronegativa. Os epidemiologistas adotaram a Fase zero para reforçar o fato de que atualmente a exposição ao vírus é um fator mais importante do que pertencer a algum “grupo de risco”. Assim que o organismo passa a produzir anticorpos e a presença do vírus é estabelecida (soropositvo), os pacientes entram na Fase 1, que pode não apresentar sintomas, ou assemelhar-se à mononucleose, com fadiga, febre ou dor de cabeça. Esses sintomas desaparecem em poucas semanas, quando então surgem as ínguas que caracterizam Fase 2.

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Esta pode durar até cinco anos sem debilitar muito o paciente. Os problemas começam da Fase 3 em diante (são seis, ao todo), quando o sistema imunológico vai ficando abalado e as infecções oportunistas se instalam. Nada disso teria acontecido se o vírus não houvesse encontrado um ponto de atração nas células que comandam as defesas do organismo e ali começasse a invasão. Trata-se de uma proteína, antígeno CD4 (um antígeno é uma molécula que pode ser reconhecida por um anticorpo), encontrada no revestimento dos linfócitos T-auxiliares. É a perda destas células que causa a deteriorização do sistema imunológico (SUPERINTERESSANTE nº 7, ano 2 ).

Uma proteína da capa viral, a glicoproteína gp120 ( que contém açúcares ), liga-se com facilidade à CD4. E é justamente nessa ligação que alguns medicamentos experimentais procuram atuar. As primeiras tentativas de se criar uma “rolha” para a gp120 não foram bem-sucedidas; por outro lado, cobrir a CD4 celular significaria criar, de certo modo, anticorpos para atacar células do próprio organismo; promissora, porém, é a proposta de se injetar no sangue a proteína CD4 livre, que iria grudar-se na capa do vírus, imobilizando-o. Isso evitaria a infecção, já que o vírus fica inerte enquanto não puder penetrar numa célula.

Mas uma vez que ele ali tenha penetrado, a tática é outra. A procura de um medicamento que agisse no interior da célula rendeu frutos no primeiro semestre de 1985, quando trezentos compostos foram testados e quinze conseguiram impedir que o vírus se multiplicasse. Entre eles estava o AZT (azidotimidina). Embora prolongue a sobrevida dos pacientes, o AZT é extremamente tóxico, chegando a provocar anemia. Sua grande vantagem talvez tenha sido a velocidade com que foi desenvolvido, testado e liberado. Novos medicamentos devem surgir. Como o AZT, a grande maioria deles tentará impedir a ação das enzimas virais.

Mas, para evitar que uma pessoa se contamine, só mesmo a vacina. Apesar dos muitos milhares de dólares investidos na pesquisa de uma vacina antiAIDS, ela não deverá estar ao alcance do público antes da virada do século. Não são poucos os problemas no caminho: para começar, o vírus destrói as próprias células que deveriam ser ativadas pela vacina; além disso, não existe um animal que serviria de modelo aos estudos, pelo simples fato de que nenhum deles fica doente ao contrair a AIDS; e, mesmo que surja algum, e os resultados forem satisfatórios, como fazer na etapa seguinte para testá-lo em pessoas sadias?

Pois uma vacina só é considerada eficaz se proteger um indivíduo da doença; e, como os vacinados, por motivos éticos, não podem passar a agir como se fossem invulneráveis, mas devem ser advertidos para praticarem “sexo com segurança”, como saber se a vacina realmente os protegeu, ou se não desenvolveram a doença apenas devido à escolha consciente de parceiros? E já que o período de latência pode chegar a cinco anos ou mais, por quanto tempo devem os voluntários ser acompanhados, antes de se chegar a uma conclusão sobre a eficácia da vacina experimental? Finalmente, não pode haver o menor risco de que o vacinado contraia a AIDS da própria vacina, uma possibilidade remota mas real nas vacinas à base de vírus inativados.

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Com as técnicas da Engenharia Genética, espera-se poder fabricar vacinas a partir de subunidades do HIV, ou então introduzi-las em outra vacina existente, como a da varicela, por exemplo. Numa época em que a Medicina pensava ter, se não a resposta, pelo menos a pista para a cura das doenças infecciosas, surge a AIDS, uma afecção mortal que mexe com a sexualidade e a moral de nossa época ( SUPERINTERESSANTE nº 7, ano 2). A desgraça da AIDS ao menos criou uma mobilização mundial sem precedentes e em tempo recorde a Medicina avançou a passos largos, com recursos e motivação. Nunca antes uma doença foi tanto pesquisada em tão pouco tempo. Se isso pode não ser um consolo à altura da devastação já causada pelo HIV, certamente é uma esperança no poder da ciência.

Para saber mais:

A outra síndrome

(SUPER número 7, ano 2)

Aids hoje

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(SUPER número 7, ano 6)


Explosão no Terceiro Mundo

(SUPER número 9, ano 6)

Intimidades pelo telefone

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(SUPER número 3, ano 7)

Perguntas sem resposta

(SUPER número 8, ano 7)

Heróis da resistência

(SUPER número 11, ano 9)

Aids, a 1% da cura

(SUPER número 10, ano 10)

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