Precisamos mesmo dormir oito horas por noite?
O número se fixou no imaginário popular. Mas uma boa noite de sono não necessariamente segue um padrão.

m 1992, o psiquiatra americano Thomas Wehr conduziu um experimento para estudar como a exposição à luz afeta os padrões de sono dos humanos. Um pequeno grupo de pessoas topou ficar na escuridão total por 14 horas por dia, durante um mês. Os voluntários usavam as outras 10 horas para ver a luz (natural ou não), e, no escuro, podiam dormir o quanto quisessem.
No começo, a média de sono registrada entre o grupo foi de 11 horas – porque as pessoas estavam compensando as noites anteriores mal dormidas. Mas, depois de alguns dias, a rotina se padronizou com uma soneca de oito horas, em média. Com um detalhe: o descanso era feito em duas rodadas. Primeiro, dormiam quatro horas; depois, acordavam por uma ou duas, e voltavam a apagar por mais quatro horas.
O estudo se tornou famoso porque foi a primeira evidência científica de que o sono humano pode ser bifásico dependendo do contexto – algo que o registro histórico também já sabia.
Na Europa medieval, por exemplo, era comum ir cedo à cama, dormir por quatro horas, acordar por uma ou duas e depois voltar aos lençóis para mais quatro horas de descanso. Nesse intervalo, era comum rezar, escrever, ler; algumas pessoas preferiam visitar os vizinhos ou ate mesmo fazer sexo.
Em seu livro At Day’s Close: Night in Times Past, o historiador americano Roger Ekirch reuniu mais de 500 citações do comportamento em documentos históricos, incluindo passagens de diários, cartas, trechos de livros etc. Os termos “primeiro sono” e “segundo sono” eram citados com naturalidade, como se fossem óbvios.
No clássico Dom Quixote, por exemplo, o protagonista dormia apenas o primeiro sono, mas pulava o segundo. Já seu fiel escudeiro Sancho Pança não tinha segundo sono porque seu primeiro durava do cair da noite até o amanhecer – igual o nosso, mas que no livro é citado como um comportamento estranho.
A ideia de se dormir oito horas seguidas só se cristalizou após a Revolução Industrial, com a padronização das jornadas de trabalho ao longo do dia e a popularização das luzes artificiais.
De qualquer forma, em turnos ou não, o oito está sempre presente quando o assunto é dormir. Não dá para cravar a origem exata da cifra porque ela não é fruto de um estudo específico ou de uma única recomendação de alguma entidade de saúde. O número primeiro se fixou porque parece ser, em média, o tempo de sono naturalmente suficiente para humanos quando podemos dormir o quanto quisermos.
O que é esquisito, se considerarmos os padrões dos nosso primos selvagens. Entre os primatas, os humanos são os que dormem menos ao longo de um dia. Orangotangos desligam por nove horas; babuínos, por dez. Lémures-de-cauda-anelada e lêmures-rato-cinza, 11 e 15 horas, respectivamente. E o macaco-da-noite, uma espécie noturna, fica só sete horas acordada.
Num estudo de 2018, cientistas criaram um modelo para calcular qual seria o tempo de sono ideal para cada primata levando em conta fatores como dieta, massa corporal, tamanho do cérebro, padrões de comportamento etc. Para quase todas espécies testadas, o modelo bateu com as observações das sonecas no mundo real – com uma exceção notável: os sapiens. O cálculo indicava que humanos deveriam dormir 9,55 horas por dia, um valor bem próximo dos chimpanzés. Mas não é isso que acontece.
A hipótese dos cientistas é que a evolução nos tirou a necessidade de algumas horinhas sonhando. O sono, afinal, é um período de vulnerabilidade, e, quanto temos tempo apagado, menos chances de ser predado. Humanos, vivendo em grupos, teriam passado a dormir menos para proteger as comunidades, possivelmente revezando as vigílias.
De qualquer forma, as oito horas parecem ser mesmo uma boa média de um sono “normal” para humanos, segundo a ciência. Mais especificamente, algo no intervalo de 7 a 9 horas é o mais indicado por organizações como a Associação Brasileira do Sono, o Centro de Controle de Doenças (CDC) americano e a National Sleep Foundation, dos EUA, com base em inúmeras evidências da literatura científica que levam em conta o impacto do sono em fatores como expectativa de vida, memória, saúde cardiovascular, capacidades cognitivas etc. O número, porém, varia com a idade: adolescentes precisam dormir entre oito e 10 horas, enquanto, para idosos, de seis a sete parecem ser suficientes.
De qualquer forma, as mesmas organizações de saúde ressaltam que a recomendação é apenas uma média geral, e que o tempo necessário varia muito de pessoa para pessoa. Se você dorme menos e se sente descansado naturalmente, está tudo bem. Idem para quem é mais dorminhoco e adia o despertador algumas vezes.
Na dúvida, o melhor a fazer é focar mais na qualidade do sono do que em tentar calcular um intervalo perfeito para ele. Nem toda hora dormida é igual. Sonos muito leves, que são interrompidos a todo momento, não têm o mesmo poder reparador de uma noite bem dormida, como você bem sabe. Por isso, especialistas recomendam a chamada higiene do sono: evitar luzes branca ou azul antes de dormir, fazer refeições leves antes de ir para a cama, não consumir álcool de noite e outras recomendações clássicas.
Pois é: se esperava ler que tudo não passa de um mito médico para sentir menos culpa enquanto não larga o Instagram e o TikTok de madrugada, lamentamos. Dormir o suficiente – e dormir bem – são de fato imperativos da saúde. Boa noite.