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Taiwan: a Ucrânia da China

Após a invasão russa à Ucrânia, cresce a tensão sobre outro barril de pólvora: a cisma entre China e Taiwan, que já vem desde 1949. Entenda as raízes da tensão, e os perigos que ela traz.

Por Alexandre Carvalho, Rafael Battaglia
Atualizado em 15 jun 2022, 10h44 - Publicado em 15 jun 2022, 10h43

Com tanto show aéreo acontecendo na tela, é provável que o espectador do blockbuster Top Gun: Maverick não tenha reparado num detalhe de figurino. A jaqueta estilosa do personagem de Tom Cruise, entre várias estampas, tem uma com as bandeiras do Japão e de Taiwan.

O adereço não chamaria atenção da mídia internacional se não fosse por dois motivos. Num trailer exibido em 2019, a mesma estampa tinha imagens genéricas no lugar das bandeiras. Na época, aliás, um dos investidores do filme era a Tencent Pictures, de origem chinesa (que acabou deixando o projeto). E os símbolos de rivais tradicionais da China surgem na roupa do piloto justamente num momento em que as tensões geopolíticas entre a potência asiática e Taiwan estão beirando as vias de fato.

Estrondo de bilheteria no mundo todo, a sequência de Top Gun: Ases Indomáveis (1986) não tem previsão de estreia em território chinês. Provavelmente será banida. Chris Fenton, autor de um livro* sobre as encrencas da China com Hollywood, vai mais longe: acredita que, pela provocação na jaqueta de Maverick, elenco, equipe de produção e estúdio envolvidos no filme serão banidos dos cinemas chineses por um bom tempo.

A situação que envolve o filme é uma nota de rodapé na história de um conflito que nunca pareceu tão a ponto de explodir. E que envolve mais personagens do que um olhar raso daria a entender.

Uma China, dois governos

China e Taiwan têm uma “questão familiar” longe de ser apaziguada. Os chineses consideram a ilha como parte integrante de sua república socialista. Já os taiwaneses pensam diferente. O lugar é uma democracia, com liberdade de imprensa. Também conta com uma economia própria e pujante: é a 21ª do mundo (razoável para um país de apenas 23 milhões de habitantes). E sua indústria de tecnologia tem um papel importante no comércio global – é líder no fornecimento de chips semicondutores.

Taiwan deixou de fazer parte da China em 1949, quando o Partido Nacionalista Chinês (conhecido como Kuomintang) foi derrotado pelo Partido Comunista, de Mao Tsé Tung. Os líderes do Kuomintang fugiram do continente e estabeleceram uma nova capital em Taiwan. Pelo ponto de vista deles, a ilha agora era a nova China. Tanto que o nome oficial do país é República da China. A “outra” tem uma palavra a mais: República Popular da China.

Em 1949, a cadeira chinesa na ONU passou a ser ocupada por Taiwan – e só por Taiwan: a China comunista era tida como pária internacional. Isso mudou em 1971, quando o país de Mao obteve um reconhecimento internacional abrangente. Dali em diante, a China continental assumiu o posto da China insular, e Taiwan segue fora da ONU. Hoje, um grupo minguado de 15 países reconhece Taiwan como nação soberana (todos minúsculos: o mais relevante entre eles é o Paraguai).

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E claro: a China que a gente chama de China, o país mais populoso do mundo, entende que só existe uma China. E que Taiwan faz parte dela. Mesmo assim, a soberania da ilha existe na prática (ela tem suas próprias forças armadas, inclusive, como qualquer nação), mas não se sabe mais quanto essa bem-vinda liberdade vai durar.

O precedente russo

Os chineses têm tolerado a existência autônoma de Taiwan com um humor que varia bastante. A ameaça de invasão eleva o tom de tempos em tempos, e ganhou uma intensidade inédita recentemente. Não porque os taiwaneses tenham feito algo diferente ou mais ousado do que sempre fizeram, mas por causa dos movimentos geopolíticos de outros países.

A invasão russa na Ucrânia pode parecer aos chineses um bom pretexto. Se a Rússia ataca um país reconhecidamente soberano, por que a China não tomaria, com seu exército de mais de 2 milhões de soldados, uma ilha que até a Organização das Nações Unidas diz que pertence a ela?

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Claro, há o desgaste na imagem internacional de um gigante que massacra um pequeno (haja vista as retaliações de toda parte do mundo aos russos), além do desagradável, para dizer o mínimo, envolvimento em uma ação militar de grandes proporções. E que no caso envolve uma complexidade logística: analistas militares consideram que o grande número de soldados e as vastas quantidades de suprimentos – veículos blindados, artilharia, munição, alimentos, suprimentos médicos e combustível – necessários para uma invasão só poderiam se mover através do mar (em vez de ir por via aérea). Seria um deslocamento vagaroso, extremamente vulnerável a mísseis de longo alcance, ataques aéreos e de submarinos.

Mas, claro: considerando a desproporção entre os dois exércitos, em algum momento a invasão teria sucesso. E é por isso que assistimos a mais um personagem externo nesse teatro geopolítico: os Estados Unidos.

Reprise do Pós-Guerra

Joe Biden declarou recentemente que defenderia Taiwan de uma eventual agressão chinesa. E um pouco de história mostra que, além da disputa geopolítica atual, essa fala do presidente deixa claro que temos uma nova versão da Guerra Fria sendo costurada.

Durante o conflito civil chinês de meados do século 20, aconteceu o natural: a União Soviética se colocou ao lado dos comunistas e os americanos apoiaram os nacionalistas derrotados – que foram parar em Taiwan. Até forneceram ajuda econômica para a formação de um país independente ali, de modo a ter influência na vizinhança dos comunistas.

Hoje, seguindo o alinhamento que prevalece na maior parte do mundo, os EUA reconhecem a posição de Pequim de que Taiwan é parte da “única China”. Mas, paradoxalmente, jamais aceitaram a reivindicação de poder do Partido Comunista Chinês sobre a ilha. Como também depende de um intenso comércio com os chineses, os EUA mantêm essa política de “ambiguidade estratégica”. Mas que anda cada vez menos ambígua.

O apoio da China à Rússia e as recentes demonstrações de força de seu exército (em outubro, 38 aviões de combate cruzaram a zona de defesa aérea de Taiwan) dão a entender que a ilha pode ser a próxima Ucrânia. Ainda que essa seja uma possibilidade remota, ela tem estreitado os laços entre Washington e Taipé. Se os chineses atacarem de fato a ilha, a agressão pode ser a gota d’água para um conflito armado entre China e Estados Unidos.

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Não só: teríamos dois blocos descomunais frente a frente. Um com os EUA e Europa; outro com China e Rússia. Em suma, uma Terceira Guerra Mundial – o cenário no qual todos perdem.

*Feeding the Dragon: Inside the Trillion Dollar Dilemma Facing Hollywood, the NBA & American Business.

Agradecimentos Marcelo Balloti, docente do curso de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi.

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