Não, Olavo: a água também não é plana
A sugestão do filósofo autodidata foi refutada ainda no século 19 por Wallace, o "padrasto" da seleção natural. Entenda com ajuda do método científico.
Tudo começou nesta quarta-feira, 29 de maio, quando Olavo de Carvalho escreveu o seguinte no Twitter: “Não estudei o assunto da terra plana. Só assisti a uns vídeos de experimentos que mostram a planicidade das superfícies aquáticas, e não consegui encontrar, até agora, nada que os refute.”
Olavo foi taxado imediatamente de terraplanista, mas refutou o rótulo com um argumento sensato: “Na minha profunda miséria intelectual, para eu saltar desses experimentos para a teoria geral da terra plana eu precisaria de muitos meses de observações e comparações.”
Felizmente para o Olavo, ele está no mínimo um século atrasado: muita gente já fez as necessárias “observações e comparações” – tanto sobre a hipótese mais restrita da água plana quanto sobre a hipótese mais abrangente da Terra plana.
Tudo começou no século 19, em um trecho de 9,7 km de um rio retificado artificalmente, localizado no condado de Cambridgeshire, ao norte de Londres, na Inglaterra. Em 1838, Samuel Rowbotham – uma personalidade terraplanista da época, que largou a escola aos nove anos e atendia pelo pseudônimo “Paralaxe” – afirmou que havia comprovado a planicidade das superfícies aquáticas em um experimento realizado por lá.
O experimento consistia em observar um barco se afastar de um observador localizado em uma ponte em uma das extremidades do trecho reto de 9,7 km. Se a Terra de fato fosse curva, Rowbotham hipotetizou que, conforme o barco se afastasse rio abaixo, ele o veria desaparecer atrás da linha do horizonte. O barco não desapareceu, e Rowbotham concluiu assim que o planeta era plano. Veja a ilustração de seu livro abaixo:
Mas a história não acaba por aqui. Entra em campo Alfred Russel Wallace, um naturalista que compartilha com Darwin o crédito pelo conceito de evolução por seleção natural (entenda neste texto a história dessa atribuição compartilhada). Ele se envolveu no assunto graças a uma aposta, que daria 500 libras a quem provasse o contrário – que a superfície da água, assim como a Terra, tinha curvatura. Apostas científicas eram comuns entre os aristocratas da época, como ilustra o livro a Volta ao Mundo em 80 Dias, de Júlio Verne.
Wallace percebeu que o experimento de Rowbotham não levava em consideração o fenômeno óptico bem-estabelecido da refração da luz pela atmosfera, que curva os raios e faz que objetos razoavelmente distantes pareçam estar mais acima da linha do horizonte do que realmente estão. Isso ocorre com o Sol todos os dias, como você pode ver no esquema abaixo.
Wallace, então, fez algo diferente: espetou postes ao longo de todo comprimento do rio, para que os localizados mais ao fundo se revelassem mais baixos que os localizados mais à frente quando vistos de uma luneta – e fez as contas para descobrir qual seria a distorção exata causada pelo fenômeno da refração nas medições.
Ou seja: desde daquela época, Rowbotham está refutado – por Wallace, e por muitos outros experimentos realizados desde então.
Esse debate, porém, não é de todo inútil. Ao afirmar que precisaria de muito mais observações e experimentos para saltar da hipótese da água plana para a hipótese da Terra plana, Olavo ignora o conceito de falseabilidade, introduzido à filosofia da ciência pelo austríaco Karl Popper na década de 1930. A falseabilidade é um dos pilares do método científico em sua formulação contemporânea. Ela diz, grosso modo, que não importa quantas observações favoráveis a uma hipótese você tenha: basta uma observação do contrário para refutá-la de vez.
Vamos explicá-la com um exemplo bobo: esquilos. Suponha que você seja um biólogo e queira provar que todo esquilo tem rabo. Você pode viajar o mundo fotografando todos os esquilos que for capaz de encontrar, e verificar em primeira mão que todos têm rabo. Na visão de Popper, porém, este corpo sólido de observações não será suficiente para afirmar que todo esquilo tem rabo – pois sempre há a possibilidade de que, no único parque que você não visitou, haja um esquilo sem rabo. E o tal esquilo anômalo, sozinho, é suficiente para derrubar a hipótese.
A falseabilidade é uma rédea; um limite que evita que os cientistas abusem de sua própria autoridade.
Popper viveu em uma era marcada por resquícios do positivismo – uma força ideológica que defendia a supremacia do conhecimento científico sobre toda forma de superstição e crença religiosa. O positivismo, inclusive, influenciou a proclamação da República no Brasil e os dizeres na nossa bandeira atual.
Ele assistiu ao darwinismo social e à deturpação da genética pela eugenia de Francis Galton, que culminariam com o Holocausto. Popper logo se deu conta de que a ciência havia esquecido suas próprias limitações – e precisava de rédeas assim. Caso contrário, qualquer um poderia vender por aí a ideia de que a Terra é plana.
Com a falseabilidade em campo, um cientista não pode afirmar nada com certeza absoluta. Só está ao seu alcance reduzir ao máximo a incerteza sobre um assunto. Se dezenas de acadêmicos fazem dezenas de observações de um fenômeno e todas elas levarem às mesmas conclusões, é porque o grau de incerteza sobre aquele determinado fenômeno é bem baixa. Há 99,9% de chance de que as conclusões sobre o tal fenômeno sejam verdadeiras. Mas, para que a teoria tenha validade cientifica, ela precisa ser falseável. É obrigatório que exista a possibilidade de encontrar um esquilo sem rabo, mesmo que ela jamais se realize.
A Teoria da Relatividade Geral de Einstein, por exemplo, é falseável: é possível fazer observações astronômicas e verificar se elas correspondem ou não às previsões feitas pelas equações. Até hoje, todas as oportunidades de testá-la (o eclipse de Sobral, a detecção de ondas gravitacionais e a imagem do buraco negro M87, para citar os exemplos mais famosos) deram razão a Einstein – de maneira que nosso grau de incerteza em relação às ideias do alemão é bem reduzido.
Já a hipótese de que as superfícies aquáticas são planas não só é falseável como foi falseada, isto é: há muitas evidências de que elas não são planas, e essas refutações por si só são suficientes para invalidar quaisquer supostas evidências de que elas sejam.
Os cientistas dão o nome de “teoria” a uma hipótese muito boa – que explica um fenômeno natural satisfatoriamente e passou incólume por muitas tentativas de refutação. Já uma teoria não tão boa assim é só uma hipótese, mesmo. A Terra plana e a água plana são hipóteses refutadas.
Outra coisa – diferente de uma “teoria” e uma “hipótese” –, é um “fato”.
Por exemplo: é um fato que maçãs caem das árvores quando maduras graças à atração gravitacional da Terra. Há duas teorias da gravitação: a de Newton e a de Einstein, que suplantou a de Newton. Ambas dão descrições matemáticas do fenômeno da gravidade – que são mais ou menos precisas e podem ser aperfeiçoadas.
Já a gravidade em si é um fato. Nas palavras de Stephen Jay Gould, de Harvard: “A teoria da gravitação de Einstein entrou substituiu a de Newton, mas as maçãs não ficaram suspensas no ar esperando o resultado do debate.”
A Terra é redonda, e isso não é bem uma teoria – está mais para fato, mesmo. De acordo com a definição do Centro Nacional para Educação Científica dos EUA, um fato é uma “observação que foi confirmada repetidas vezes e, para todos os efeitos práticos, é aceita como verdade. A verdade, na ciência, nunca é final, e o que é aceito como fato hoje pode ser modificado ou até descartado amanhã.” Há dezenas de fotos e experimentos que confirmam essa observação.
Se a comunidade científica encontrasse uma evidência convincente de que a Terra não é redonda, a falseabilidade de Popper obrigaria todos a recapitularem essa noção e propor uma nova. A ciência é um mecanismo que regula a si próprio, a teoria da Newton foi substituída pela de Einstein sem muitos resmungos quando uma se provou ser uma descrição da realidade mais precisa que a outra.
Ou seja: não há valor nenhum na análise que Olavo de Carvalho faz de sua cadeira. Os conceitos de hipótese, teoria e fato estão bem estabelecidos, e questionar um fato demanda evidências sólidas. Se elas existissem, já teriam sido incorporadas pela ciência. Mas os cientistas aplicaram o conceito de falseabilidade às hipóteses que tratam do formato da Terra – e elas sucumbiram à força das evidências de que o planeta tem curvatura. Ciência é questão de evidência – não de opinião.