Covid-19: temperatura de armazenamento de doses pode dificultar vacinação
Algumas candidatas a vacina precisam ser congeladas a temperaturas baixíssimas. Entenda o que a ciência pode fazer para driblar o problema.
Nos últimos dias, várias empresas anunciaram resultados preliminares positivos dos testes de suas candidatas à vacina contra a Covid-19. Caso alguma consiga aprovação em breve, haverá uma corrida mundial para compra, distribuição e venda do imunizante. O processo não será rápido e fácil a ponto de acabar com a pandemia da noite para o dia, claro. Um dos desafios da logística é que algumas vacinas precisam ser mantidas em temperaturas baixíssimas, muito além das oferecidas por freezers tradicionais.
Isso vale especialmente para a vacina produzida pela Pfizer em parceria com a BioNTech, que anunciou seus resultados na semana passada. Na chamada fase 3 de testes, em que milhares de pessoas são vacinadas de forma voluntária, a candidata mostrou uma eficácia de 90% em imunizar os participantes após duas doses. Os dados ainda não foram publicados em revista científica e os detalhes do estudo não estão claros, mas a boa notícia trouxe esperanças em meio a um cenário que diversos países estão enfrentando a segunda onda de infecções, já que se espera que uma vacina contra a doença tenha no mínimo 50% de eficácia para ser viável.
Mas a vacina da Pfizer possui uma problemática: ela precisa ser congelada a temperaturas baixíssimas – entre – 80 ºC e – 70 ºC – e não pode ser descongelada por muitas vezes (o recomendando é que isso aconteça apenas para a aplicação).
Essa característica dificultaria e muito a sua distribuição em massa, já que a temperatura exigida é cerca de quatro vezes mais fria que a dos congeladores geralmente utilizados em em hospitais e farmácias pelo mundo. Para manter as amostras viáveis, seria necessário uma cadeia de aparelhos especiais e ultrafrios, que demandaria tempo e dinheiro para ser construída. O detalhe se torna pior ainda quando pensamos no transporte. Com uma vacina 90% eficaz, seria necessário imunizar no mínimo 56% da população para estabilizar a epidemia, e uma porcentagem ainda maior para suprimi-la. As doses, assim, teriam que ser distribuídas no mundo todo, incluindo em áreas rurais, pobres e de difícil acesso.
Essa fragilidade da vacina quanto à temperatura ocorre por causa da técnica inovadora empregada em seu desenvolvimento. Diferente de outras vacinas convencionais, a candidata da Pfizer não possui o vírus desativado ou mesmo pedaços de proteínas dele em suas amostras. As doses levam apenas um fragmento sintético do RNA mensageiro do coronavírus (RNAm), pedaço que contêm instruções de como produzir proteínas. O RNAm presente na vacina funciona como uma receita de bolo: nossas células leem o código e executam a tarefa correspondente, que, no caso, é produzir proteínas virais. Nosso próprio corpo vira uma fábrica de fazer e liberar pedacinhos de vírus, que são totalmente inofensivos.
O sistema imunológico do indivíduo, porém, logo percebe que aqueles pedacinhos produzidos não são normais – são proteínas invasoras. O corpo, então, cria anticorpos contra ele (proteínas especializadas para se conectar e neutralizar o corpo estranho). Com isso, a pessoa agora tem uma arma contra essas proteínas virais, e, se um dia o coronavírus real tentar invadir as células daquela pessoa, o organismo estará pronto para combater o intruso antes que a infecção comece.
A técnica é inovadora e promissora (nenhuma outra vacina no mercado, contra qualquer doença, usa essa tecnologia), mas possui um problema. Os pedacinhos de RNAm na vacina são carregados por minúsculas cápsulas de lipídeo (gordura), que protegem esses fragmentos e os introduzem em nossas células. Essas cápsulas, porém, precisam ser mantidas a temperaturas baixíssimas, porque podem se degradar rapidamente em temperatura ambiente. Nos testes atuais da Pfizer, por exemplo, as amostras são mantidas a – 70 º C em freezers especiais.
Mas nem tudo é negativo. Outra candidata a vacina promissora é a da farmacêutica americana Moderna, que também anunciou seus resultados recentemente. Na fase 3, o imunizante teve eficácia de 94%, segundo os dados preliminares. E, apesar de também usar a mesma tecnologia que a Pfizer, essa vacina consegue ficar viável a apenas – 20º C – uma temperatura geralmente alcançável em congeladores comuns de hospitais e farmácias. Mesmo assim, a vacina da Moderna pode ser difícil de transportar para lugares mais afastados ou que não possuem distribuição frequente de energia elétrica para manter freezers ligados, por exemplo.
Excesso de cuidado?
Apesar de parecer um cenário catastrófico, é possível que as empresas consigam contornar esse problema. A empresa alemã CureVac também está desenvolvendo uma vacina contra a Covid-19 que usa a tecnologia de RNA mensageiro, e anunciou recentemente que sua candidata não precisa ser congelada – ela pode ser mantida apenas refrigerada em geladeiras comuns, com temperaturas entre 4º e 5º C. Essa vacina ainda não entrou em fases de testes com um grande número de pessoas.
A fórmula específica de cada vacina é mantida em segredo por cada empresa, mas se sabe que tanto a Pfizer, a Moderna e a CureVac utilizam as mesmas cápsulas de lipídeo que envolvem os pedacinhos de RNA em suas vacinas. Isso porque todas compram essa nanopartícula de gordura de uma mesma empresa, a Acuitas Therapeutics, que tem sede no Canadá. Em entrevista ao portal Yahoo, o CEO da Acuitas, Thomas Madden, revelou que não se sabe exatamente até que temperatura essas cápsulas se mantém viáveis. Segundo ele, a tecnologia foi desenvolvida tão rapidamente dada a urgência da pandemia que não foi possível fazer estudos complexos sobre a estabilidade das nanopartículas em diferentes temperaturas.
Segundo Madden, a Pfizer está mantendo as amostras a – 70º C por um “excesso de cuidado”, ou seja, essa é a “estimativa mais conservadora” sobre as temperaturas em que as amostras ficam viáveis. É possível que elas continuem funcionando em temperaturas muito mais amenas – e o fato da vacina da CureVac continuar estável em temperaturas positivas é um bom sinal, já que elas utilizam as mesmas cápsulas de gordura. Obviamente, para provar isso, serão necessários novos estudos.
Além disso, outras vacinas também já desafiaram cientistas no quesito temperatura, e nem por isso se tornaram inviáveis. A vacina da Ebola, por exemplo, precisa ser mantida a – 80º C – um problema e tanto, considerando que a doença afeta áreas tropicais da África, muitas vezes de difícil acesso e com pouquíssima estrutura para armazenamento e transporte. Agentes de saúde pública, porém, não se deram por vencidos e arrumaram alternativas: a empresa privada Arktek desenvolveu contêineres especiais, capazes de manter temperaturas ultrafrias durante o transporte das amostras até as áreas da África subsaariana. Só na República Democrática do Congo, um dos países mais afetado pela doença, 400 mil pessoas foram vacinadas graças a essa tecnologia.
Vale lembrar também que só algumas vacinas requerem esses cuidados com temperatura – a maioria que se utiliza hoje em dia contra outras doenças são armazenáveis em geladeiras comuns. Embora todos os detalhes não tenham sido divulgados até agora, outras candidatas à vacina contra o coronavírus que não utilizam a tecnologia de RNA mensageiro (como a da empresa chinesa SinoVac ou a britânica da Universidade de Oxford, ambas em teste no Brasil) não parecem ter esse problema até agora. No melhor dos cenários, em que várias vacinas sejam aprovadas, é possível que países com dificuldade de manter as amostras congeladas possam optar por imunizantes que não necessitem desse tratamento – mesmo que sejam menos eficazes.