Bad trip: o lado perturbador da meditação
Meditar diminui o estresse, a ansiedade, a dor... mas também pode ter seu lado negativo. A ciência resolveu olhar para os efeitos colaterais da prática
Suzanne Segal havia acabado de sair de uma clínica para gestantes quando sentiu uma forte mudança de pressão nos ouvidos. A sensação era semelhante à de segurar um espirro ou de passar pela pressurização num avião. Mas algo mais ocorreu. Grávida de três meses, ela sentiu como se seu “eu” interior tivesse saído do corpo e migrado para uma bolha externa que agora flutuava no ar e assistia Suzanne agir em piloto automático. Aterrorizada, examinou os rostos dos outros passageiros em busca de expressões de espanto. Todos pareciam tranquilos. Sacudiu a cabeça para tentar voltar ao normal e sentou do lado de uma senhora, com quem trocou algumas palavras. “Apesar de a minha voz continuar falando e fazendo sentido, eu me sentia completamente desconectada dela”, contou na sua autobiografia, Collision with the Infinite (“Colisão com o infinito”, sem edição no Brasil).
Suzanne meditava com frequência e estava sofrendo de despersonalização, um transtorno descrito na última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-5, a Bíblia da psiquiatria. De acordo com o manual, o distúrbio de despersonalização, ou DPD, consiste em “experiências de irrealidade, distanciamento ou de ser um observador externo dos próprios pensamentos, sensações ou ações. O indivíduo pode sentir como se estivesse entre nuvens, em um sonho ou em uma bolha”.
A versão crônica do distúrbio que atacou Suzanne naquele dia afeta cerca de 2% da população, mas episódios transitórios são bem mais frequentes e atingem metade dos adultos alguma vez na vida. A despersonalização pode dar origem ou ser o efeito colateral de doenças como ataques de pânico, depressão, ansiedade ou transtorno borderline.
A meditação é outro gatilho. Apesar da enorme popularização nos últimos anos, seus efeitos colaterais ainda são pouco conhecidos, e a maioria dos praticantes sequer sabe que condições esquisitas podem surgir. Desde que as práticas contemplativas chamaram a atenção dos cientistas, a maioria dos estudos se dedicou a ressaltar apenas seus benefícios.
Ainda são raras as pesquisas que olham para esse lado perturbador. Mas a situação está mudando. “Nos meios acadêmicos, agora existe um pouco mais de preocupação em relação aos efeitos reversos, sim. Embora ainda muito menos do que deveria”, diz Tiago Tatton, especialista em Mindfulness pela Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em San Diego. O interesse, de acordo com Tatton, ainda não é maior porque o lado bom do mindfulness, um tipo cada vez mais popular de meditação, está na moda nos centros de pesquisa – e falar sobre seus efeitos adversos poderia ser um tiro no pé no financiamento dessas pesquisas.
Um dos poucos estudos nessa área é de 2014. Uma pesquisa da Universidade do Leste de Londres constatou que 20% de um grupo de 30 meditadores havia tido experiências dissociativas por causa da prática. Ao investigar os motivos, os cientistas notaram que muitos deles haviam feito meditações avançadas sem conhecimento algum dos métodos – e nem de si mesmos. “Você apenas sente que não existe e que não há nada realmente dentro de você. É niilista, aterrorizante”, descreveu um dos voluntários.
Outro estudo recente é de 2017, da Universidade Brown, uma das melhores do mundo. A pesquisa acompanhou mais de 70 voluntários e anotou sintomas que eles tiveram durante um período da vida em que meditavam frequentemente. Todos relataram algum tipo de condição psicológica fora do comum. Oitenta e dois por cento sentiram medo ou paranoia, 62% tiveram alterações no sono, 42% viram alucinações e 47% disseram que reviveram memórias traumáticas. Parece que mexer com o estado de consciência pode ter consequências inesperadas.
A psicóloga e neurocientista Willoughby Britton, que é uma das autoras do estudo, vem compilando relatos de experiências meditativas desagradáveis. Ela criou, no final da década de 2000, um centro de reabilitação de praticantes que sofrem de despersonalização e problemas similares. Praticante e instrutora de mindfulness há duas décadas, Britton decidiu investigar o lado menos sedutor da arte contemplativa depois de viver o que definiu como uma crise nervosa durante uma sessão. Ela havia terminado sua residência médica e decidiu participar de um retiro de meditação, onde experimentou “estados mentais desafiadores”, segundo ela.
“Pensei que tivesse ficado louca”, disse em 2011. “Não fazia ideia por que eu estava sentindo aquilo. Descobri mais adiante que, na verdade, os sintomas eram estágios clássicos da meditação, e eu estava completamente desinformada.” Hoje em dia, em um sobrado do século 19 situado em Providence, Estado de Rhode Island, ela recebe meditadores que buscam compreender suas bad trips.
Um despertar
A maior parte dos pesquisadores, porém, não acredita que sentir mal-estar durante a meditação seja um grande problema. Afinal, qualquer método que se propõe a mergulhos profundos nos pensamentos pode trazer à tona sensações desconfortáveis, até mesmo a psicoterapia – quem nunca saiu mal de uma sessão com o terapeuta? O verdadeiro problema é o modo como a meditação foi disseminada no Ocidente.
Na tentativa de torná-la cada vez mais palatável ao público, instrutores foram aos poucos distanciando a prática da sua sabedoria ancestral, que prevê alertas sobre os becos mal iluminados da mente. A versão utilitarista propagada por aí – o McMindfulness, como alguns críticos batizaram o fenômeno – passou a ser difundida por instrutores que muitas vezes não estudaram os riscos potenciais da meditação antes de ensiná-la para iniciantes sedentos para reduzir o estresse. “Professores de meditação e espiritualidade são pintados com uma aura doce que distorce a realidade de indivíduos, sociedades e a história. As ideias positivas associadas à meditação são irreais e só deixam as pessoas mais vulneráveis aos efeitos psicológicos adversos”, escrevem os psicólogos Miguel Farias e Catherine Wikholm, no livro The Buddha Pill (“A pílula do Buda”, sem edição no Brasil).
“Hinduístas e budistas conhecem esses perigos há milênios. No budismo tibetano, por exemplo, existe até um termo para o mar revolto oriundo da meditação: o distúrbio de lung (algo como ‘os ventos internos’)”, explica Tatton. Em alguns textos canônicos, os efeitos colaterais, que vão de crises de pânico a experiências dissociativas, são classificados como o “lado sombrio” da mente. Em um discurso atribuído a Buda, há a descrição de um monge indo à loucura e se suicidando após vislumbrar a morte na contemplação.
Na verdade, para budistas e hinduístas, o desprendimento do “eu” é justamente o objetivo da meditação. Para as religiões orientais, quem medita pode enxergar a verdade do Universo, o que significa perceber que vivemos num mundo de ilusões que causam sofrimento. Uma dessas ilusões é o “eu”. Por isso, não é à toa que a meditação dispara justamente casos de despersonalização.
O psiquiatra Russell Razzaque, autor do livro Breaking Down is Waking Up (algo como “O colapso é o despertar”), é um dos especialistas que defendem a tese de que a agonia da despersonalização pode ser encarada como um despertar existencial, e não como um colapso nervoso. Razzaque chegou à hipótese após ter vivido algo parecido. “Me senti descendo para um estado meditativo profundo. Viajei pelas sensações do meu corpo e dos pensamentos para um estado em que eu nada sentia, como se fosse o útero de tudo. Eu era tudo e nada ao mesmo tempo”, descreveu.
Razzaque contornou a situação com o conhecimento adquirido nas aulas de psiquiatria. Mas aquele insight dolorido o fez mudar a forma de encarar as crises de seus pacientes e entender que algumas experiências desagradáveis podem ser o indicativo de um crescimento espiritual que, se bem conduzido, transforma-se em algo positivo. Ou seja, até mesmo na sua faceta mais assustadora, a meditação pode acabar trazendo benefícios.
Para saber mais
Meditação: pare, respire e mude sua vida
Alexandre de Santi, Superinteressante, 2018