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A história real de Mendel, o frade workaholic e comilão que fundou a genética

Mendel não foi um religioso pacato: foi um nerd inseguro, que levou bronca de um bispo por fazer ciência no mosteiro e fez algo tão avançado que ninguém percebeu a importância na época.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 jan 2024, 17h24 - Publicado em 11 jan 2024, 17h10

Em 1854, quando o bispo Anton Ernst Schaffgotsch visitou o tradicionalíssimo mosteiro da cidade de Brno, então parte do Império Austro-Húngaro, ele esperava encontrar um grupo asseado de monges se dedicando à adoração de Deus. Encontrou, porém, uma atmosfera universitária e um cheiro digno de pet shop do século 19: serragem úmida de xixi. Aquilo só podia significar uma coisa: camundongos. Alguém estava criando camundongos enjaulados em um prédio sagrado de uns 500 anos. Putz.

Schaffgotsch era um sujeito tão simpático quanto seu sobrenome – o que dá uma noção do medo que o abade Cyril Napp, diretor do local, sentiu quando foi chamado para uma conversa. Napp, que fazia qualquer coisa para proteger seus pupilos, se explicou. Disse a Schaffgotsch que os camundongos pertenciam a um rapaz bastante inteligente chamado Gregor Mendel. Que ele gostava de ciência. Que ele queria entender como pais transmitem as características hereditárias para os filhos; por isso, colocava camundongos cinzas para copular com os brancos – e depois via de que cor saiam as crias.

Não ajudou muito. Na verdade, não ajudou nada. Criar camundongos num mosteiro já era ruim. Estimulá-los a fazer sexo, péssimo. Fazer isso trancado no quarto à noite beirava a sandice – principalmente para alguém com votos de celibato e castidade. Os ratos foram retirados do local por ordem do bispo. Mendel quase foi retirado do local por ordem do bispo. Mas pensou rápido: perguntou se podia continuar seus experimentos científicos com plantas, em vez de animais. O bispo concordou: “plantas não fazem sexo. Acho que tudo bem”.

Plantas, é claro, fazem sexo. E no mosteiro de Brno fizeram sexo em uma escala inimaginável. Mendel começou a cultivar e cruzar pés de ervilha na estufa. Logo, a plantação cresceu e não coube mais no prédio. Em 1857, já ocupava um terreno de 30 m de comprimento e 6 m de largura no jardim. É desnecessário dizer que não havia mais nada nem remotamente parecido com um jardim. Felizmente, para Mendel, o bispo não viu a cena. Foi ali, analisando a maneira como as ervilhas-mãe transmitiam características hereditárias às ervilhas-filhas, que Mendel fundou a genética.

Para explicar seu trabalho, vou apelar para um texto escrito pela jornalista Giovana Girardi em 2007, que recuperei do arquivo da própria Super:

A sacada de Mendel foi ter feito suas análises do ponto de vista quantitativo. Só pela observação é fácil dizer que, do cruzamento de ervilhas verdes e amarelas, algumas vão nascer amarelas e outras vão nascer verdes. Mas o monge contava, com rigor e paciência, quantas eram de cada cor e de cada textura, supondo que essa proporção deveria ser importante para entender o fato. E era mesmo.

A partir dos resultados obtidos, ele deduziu que cada uma dessas características deveria ser determinada por um par de fatores hereditários – um que vem do pai e outro da mãe. Ele percebeu ainda que um dos fatores do par pode dominar o outro e “se impor”. Ou seja, que um fator é dominante (e ficou conhecido tradicionalmente nas aulas de biologia pela letra maiúscula, como A, ou “azão”) e o outro, recessivo (a, ou “azinho”).

Por exemplo, ao cruzar sementes lisas e amarelas com sementes verdes e rugosas, Mendel notou que o traço amarelo se sobrepunha ao verde, e que o liso vencia o rugoso. A maior parte das ervilhas resultantes era amarela e lisa (cerca de 60%) e a menor parte, verde e rugosa (5%). Em uma quantidade intermediária, surgiam as amarelas e rugosas e as verdes e lisas (cerca de 17% cada). Para ser amarelo (ou liso), basta ter um A – o indivíduo pode ser AA ou Aa. Já para ser verde (ou rugoso) ele precisa ter dois “azinhos”.

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Mendel conseguiu o cargo de professor substituto de ciências em um colégio de ensino médio. Queria a vaga de efetivo, e duas vezes foi à capital Viena prestar uma espécie de vestibular para consegui-la. Na primeira tentativa, não havia estudado o suficiente. Para a segunda, estudou tanto que arranjou briga com o examinador de botânica. Se retirou da sala antes do final da prova, frustrado.

Ou seja: Mendel não era um monge anônimo que brincava com ervilhas no quintal. Era um cientista diplomado, workaholic neurótico, insatisfeito com o próprio desempenho acadêmico. Nas cartas que enviou em seu tempo no cargo de abade (uma autoridade eclesiástica relevante), falava mais de comida que de Deus. Nas palavras do jornalista Bill Bryson, se teve um defeito, foi o de ser científico demais em sua abordagem.

Mendel apresentou seu estudo com ervilhas a 40 pessoas ao longo de dois encontros da Sociedade de Brno para o Estudo de Ciências Naturais. Graças à experiência em sala de aula, era um bom orador, e até emplacou uma ou duas piadinhas. O público, porém, se perdeu na mistura inédita entre botânica e estatística. Hugo Iltis, seu primeiro biógrafo, narra: “Havia uma audiência razoável. É de se admitir, porém, que a atenção da maior parte dos presentes estava propensa a vaguear (!) quando o palestrante se envolvia em deduções matemáticas bastante difíceis; e é provável que uma alma sequer dentre eles tenha realmente entendido aonde Mendel queria chegar”.

O artigo científico resultante, intitulado “Ensaios com plantas híbridas”, tampouco se perdeu: foi publicado e passou 35 anos em bibliotecas importantes da Europa. A maior bola na trave da história da ciência provavelmente foi quando Darwin recomendou a um amigo um livro que continha 14 citações ao trabalho de Mendel – sem perceber que essa era a peça que faltava para explicar a seleção natural.

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