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A mente brilhante dos corvos

Debaixo das penas escuras está um cérebro inventivo, bom de memória e de aprendizado. Descubra as vantagens cognitivas do mais inteligente dos pássaros

Por Leo Caparroz
Atualizado em 13 ago 2024, 13h15 - Publicado em 16 set 2022, 10h20

Texto Leonardo Caparroz | Ilustração Mariana Leal | Design Juliana Krauss | Edição Alexandre Carvalho

Em maio de 2016, a polícia de Vancouver, no Canadá, recebeu a denúncia de um carro pegando fogo no estacionamento de um McDonald’s. Quando chegaram ao local, os oficiais foram confrontados pelo suspeito de ser o incendiário: um homem com uma faca, que partiu para cima deles. Os policiais, então, atiraram na perna do sujeito, que soltou a arma, foi preso e levado a um hospital.

A área foi interditada com a clássica fita amarela, e tudo parecia resolvido até que um larápio tentou sumir com a prova do crime: um corvo pegou a faca do chão e saiu voando com ela no bico. Só depois de ser perseguido pela polícia, largou a evidência.

Não foi a primeira vez que essa ave aprontava alguma. O corvo em questão, chamado Canuck, era bem conhecido na região pelas interações com os moradores. Tanto que suas traquinagens ganharam uma página exclusiva no Facebook: há vídeos dele roubando bilhetes de apostas de um casal de idosos em uma corrida de cavalo, pegando carona no limpador de para-brisas de um carro em movimento, usando as garras e o bico para jogar água de uma mangueira num homem.


Ninguém achava ruim, só admirava a habilidade do bichinho e seu espírito brincalhão. O pássaro-celebridade ficou tão querido por lá que, em 2018, foi eleito numa enquete da emissora CBC como “embaixador não oficial de Vancouver”. Ganhou com 81% dos votos, deixando em segundo lugar outro canadense, mais famoso: o ator Michael J. Fox.

Canuck pode ser o mais midiático dos corvos, mas sua sagacidade não é exceção entre seus pares: a ciência já descobriu que esses pássaros – de origem asiática, mas que marcam presença em diversas zonas temperadas do planeta – são criaturas extremamente inteligentes. E usam essa perspicácia não só para fazer pegadinhas, mas também para sobrepujar desafios na natureza. Graças à sua cognição e (longa) vida em grupo, os corvos desenvolveram habilidades que lhes dão vantagens em seu ambiente – e que impressionam os ornitólogos.

Cérebro de passarinho

Jennifer Ackerman defende que usar a expressão “cérebro de passarinho” para chamar alguém de burro é uma baita incoerência. Em seu livro A Inteligência das Aves (lançado recentemente no Brasil), essa americana, autora de best-sellers sobre pássaros, escreve: “Nas últimas duas décadas, pesquisas mundo afora têm revelado exemplos de aves capazes de façanhas mentais comparáveis às dos primatas”. E, entre nossos amigos de asas, nenhum se mostra mais inteligente que os do gênero Corvus, os protagonistas deste texto.

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Corvos têm cérebros pequenos, do tamanho de um dedão, mas isso não os impede de exercer atividades de alta demanda cognitiva. Aliás, a proporção entre o tamanho de seu corpo e o de seu cérebro é mais próxima à dos mamíferos do que de outros pássaros. Seus cérebros também são mais densos (o que é favorável para o raciocínio), e os neurônios se concentram mais na parte frontal, justamente a responsável pelo planejamento.

Ou seja, é mais uma questão de otimização do que puramente tamanho. “O cérebro deles [dos corvos] é organizado de maneira muito diferente do nosso, mas faz as mesmas coisas. Traz informações de órgãos dos sentidos, integra-as, informa-se com experiências passadas – talvez seu estado emocional –, então eles raciocinam ou agem a partir disso… e nós fazemos o mesmo”, conta John Marzluff, professor de ciência da vida selvagem na Universidade de Washington e autor de diversos livros sobre corvos.

O cérebro humano tem duas estruturas importantíssimas: o hipocampo e a amígdala. A primeira é responsável pela memória; a segunda, pelas emoções. Juntas, elas produzem algo chamado de “memória episódica”, que é basicamente a capacidade de conectar uma memória a uma sensação. Mais ou menos como acontece na animação Divertida Mente (2015). Por causa disso, nos lembramos da sensação dolorosa de tomar um tombo por causa de um chão molhado e passamos a ficar mais atentos com pisos escorregadios. Ou então nos lembramos de como é prazeroso estar entre amigos e buscamos essa companhia mais vezes.

Corvos também têm isso. Regiões de seus cérebros reproduzem as funções do hipocampo e da amígdala, e os tornam capazes não só de recordar uma situação, mas de reavivar o que sentiram na hora. Essa capacidade é extremamente vantajosa na natureza, pois os ensina a evitar situações perigosas, associadas a experiências desagradáveis ou de risco de vida.

Além disso, os corvos não se limitam a reagir a estímulos. Eles são capazes de ponderar suas ações antes de executá-las. Do mesmo jeito que você não desiste de uma aula ou um livro chato ao primeiro sinal de tédio, os corvos não obedecem necessariamente aos primeiros impulsos.

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Um corvo identificado como 007, por exemplo, foi treinado para encarar desafios trabalhosos em troca de carne. O primeiro envolvia puxar pedras de dentro de gaiolas com um pedacinho de pau e então depositá-las em uma caixa. O segundo era usar um graveto maior para puxar comida de dentro de um recipiente bem estreito. Um dia, 007 recebeu uma provocação maior: enfrentar esses desafios juntos, de uma vez só.

Agora, ao colocar na primeira caixa as pedras tiradas da gaiola, o peso das pedrinhas abria um compartimento que dava acesso ao graveto – a única ferramenta ali capaz de puxar a comida da outra caixa, estreita. Repensando constantemente suas ações, o corvo conseguiu completar os passos na ordem necessária, resolvendo o problema (e enchendo o bucho) em dois minutos e meio.

A façanha mais impressionante de seus cérebros é, sem dúvida, a capacidade de aprender. Imagine você, pegando um violão pela primeira vez. As notas não fazem sentido, você não sabe onde pôr os dedos ou quais cordas tocar. Então, cada vez que você pratica, vai ficando mais e mais fácil.

Pesquisadores da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, colocaram corvos diante de um problema antigo. Baseados na fábula de Esopo, “O Corvo e o Jarro”, em que um pássaro sedento enche um recipiente de água com pedras até que a água esteja ao alcance de seu bico, os corvos foram apresentados a alguns sistemas de tubos com água.

Eles deveriam colocar pedras nos tubos, fazendo o nível da água subir e, assim, resgatar uma recompensa (carne ou minhoca) que boiava. Quando viram o problema pela primeira vez, ficaram pensando numa estratégia. Da mesma forma que nosso cérebro faria, o dos corvos ponderou a situação. E, assim como nós, passaram a realizar a tarefa complexa de forma automática depois de tê-la desvendado. Os pássaros já nem pensavam mais no que faziam enquanto faziam, do mesmo jeitinho de quem toca violão depois de se tornar hábil com o instrumento – e nem olha mais para as cordas. Ao fim do estudo, os pesquisadores constataram que os corvos entendiam o problema num nível equivalente ao de uma criança de 5 a 7 anos.

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Memórias episódicas e capacidade de reconsiderar e treinar mentalmente uma ação nova são peças-chave para a sobrevivência dos corvos; especialmente considerando a proximidade com humanos, que estão sempre mudando o ambiente. Gostar de conviver com outros corvos ajuda muito na tarefa de se adaptar às inconsistências no seu meio e às ameaças.

Vida social

Corvos são animais gregários, e as interações com aves do bando foram importantes para o desenvolvimento de áreas específicas de seu cérebro ao longo da evolução. Afinal, a vida em grupo implica uma alta demanda cognitiva, boa memória e capacidade de comunicação.

A funcionalidade dessa convivência é, sem dúvida, um dos aspectos mais impressionantes desses pássaros. Assim como os humanos, eles são muito melhores em resolver problemas com a força do coletivo: aproveitam-se dos erros e acertos de seus companheiros para entender o que é perigoso ou não. Aprendem inclusive com amigos mortos.

A cena é a de vários indivíduos de preto ao redor de um cadáver. Mas as semelhanças com os velórios humanos param por aí. Aparentemente, não há pêsames ao viúvo. O que ocorre está mais para uma ação de perícia: os corvos estão investigando juntos a causa mortis e, a partir dessa constatação, vão analisar o que pode ser uma ameaça para si próprios.

Em um experimento, cientistas deixaram o cadáver de um corvo nas proximidades de um bando. Depois da investigação, os corvos da área ficaram menos inclinados a aceitar comida de estranhos ­– o que não aconteceu quando os pesquisadores repetiram os testes com pombos. Nos corvos, o companheiro morto despertou um nítido sinal de alerta nos demais, que ficaram mais precavidos quanto a novos riscos potenciais no entorno. “É um momento para colher informação e uma tentativa de garantir que isso não aconteça com eles também”, afirma Ackerman.

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Além de aprender rápido, eles não esquecem. E transmitem o conhecimento adquirido para os filhotes. É o que vamos ver agora. Pesquisadores da Universidade de Washington realizaram um estudo em que capturavam corvos selvagens nas proximidades do campus. Os cientistas faziam a captura usando máscaras específicas – e depois soltavam os corvos.

Ilustração de duas pessoas utilizando máscaras apontando para os corvos, que estão gritando.
Num estudo, corvos se lembraram da ameaça simulada de pesquisadores mascarados 16 anos depois. E alertaram seu grupo sobre o perigo. (Mariana Leal/Superinteressante)

Quando as aves reencontravam um dos participantes usando as mesmas máscaras da ocasião em que foram presos, identificavam seus “caçadores” e emitiam gritos de alerta. Mesmo depois de cinco anos, esses corvos ainda se lembravam das máscaras e, diante de alguém usando o disfarce, comunicavam a ameaça aos colegas de bando. Assim, indivíduos que não haviam sido capturados no começo da experiência também passaram a temer os humanos que usavam aqueles acessórios no rosto.

“Ano passado concluímos o décimo sexto ano da pesquisa. Os pássaros ainda respondem da mesma forma – sendo que, dos que foram capturados na primeira vez, apenas um deles [uma fêmea] está vivo hoje”, afirma Marzluff, um dos membros do estudo. “Ela ainda reage [às máscaras], mesmo que eu não tenha feito nada a ela por 16 anos; e outros pássaros, que não eram nem nascidos no início, também reagem. Aprenderam que havia perigo.”

Estrategistas natos

Betty foi o corvo que, em 2002, deu origem aos estudos recentes sobre a inteligência dessas aves. De frente a um tubo com um baldinho de carne no fundo, ela não era capaz de pinçá-lo com o bico. Como solução, dobrou um pedaço de arame e o usou como gancho para puxar o balde. Corvos da Nova Caledônia (arquipélago francês no sul do Oceano Pacífico) já confeccionavam ganchos para fisgar larvas na natureza, mas Betty nunca havia se deparado com aquela situação – e soube adaptar seus conhecimentos à necessidade.

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No Japão, corvos desenvolveram um método de expandir seu cardápio. Esses pássaros são onívoros (comem tanto carne quanto vegetais) e gostam de nozes. Só que não têm a força necessária para quebrar a casca dura. Então precisaram pensar numa forma de fazer com que alguém (ou outra coisa) abrisse o fruto para eles. Tiveram, então, a ideia de jogar as nozes na rua, para que, com o passar dos carros, elas fossem esmagadas.

Ilustração de corvos nas ruas do Japão, com nozes no bico.
Corvos japoneses jogaram nozes na rua para que carros abrissem as cascas para eles. E deixavam na faixa de pedestres, para não serem atropelados. (Mariana Leal/Superinteressante)

Já era uma bela estratégia, mas, com o tráfego em movimento, o problema era conseguir coletar o prêmio sem ser atropelado. A solução que os corvos encontraram foi engenhosa: em vez de largar as nozes no meio da rua, eles passaram a deixá-las em cima da faixa de pedestres. Quando os carros paravam no sinal vermelho, ficava bem tranquilo comer os restos esmagados da noz.  

Trata-se de habilidades que colocam os corvos, e sua família, a dos Corvídeos, um patamar acima do das demais aves. E de boa parte dos mamíferos também. Talvez suas habilidades só sejam mesmo comparáveis às da nossa família, a dos primatas. “Eu os colocaria entre os macacos sociais, com certeza”, diz Marzluff. E nos manteria [nós, humanos] acima deles simplesmente por conta das tecnologias que temos. Eles estão fazendo o que é necessário em seu ambiente, assim como nós.”

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