Antropoceno: entramos em uma nova época geológica?
Microplásticos, concentrações brutais de gás carbônico, metano e óxido nitroso na atmosfera e até resíduos radioativos de bombas atômicas: a atividade humana já deixou uma cicatriz perceptível no registro geológico. Será que inauguramos um novo capítulo na história da Terra?
Texto: Leonardo Caparroz | Design: Caroline Aranha e Luana Pillman | Edição: Bruno Vaiano
O pequeno lago Crawford fica nos arredores de Toronto, a maior cidade do Canadá, em uma área de conservação ambiental. Tem 22,5 m de profundidade, pouco mais de 200 m de comprimento e uma característica peculiar: na verdade, ele consiste em dois lagos empilhados. O Crawford é um tipo raro de corpo d’água, chamado de meromítico, em que a camada de líquido do fundo nunca se mistura com as águas da superfície.
Para entender por que isso é tão digno de nota, precisamos começar explicando que o tempo todo, em qualquer lago, cai um montão de rocha, areia, poeira, fuligem, pólen, cocô, folhas, animais mortos, meteoritos pulverizados e qualquer outra coisa que você possa imaginar escorrendo com a água da chuva ou caindo do céu.
É sujeira, em suma – ou, para adotar a elegância dos geólogos, sedimento. No fundo do lago, esse sedimento acumulado vai formando camadas. Uma lasanha, em que os depósitos mais antigos são compactados pelos mais recentes, até endurecerem e se tornarem rocha.
Em um lago meromítico como o Crawford, a água não circula e não há peixes ou outras formas de vida no fundo para agitar o material que se acumula. O sedimento no fundo fica intocado e acaba formando camadas bem definidas, fáceis de distinguir. Cada camada equivale a uma época. E assim, pode-se obter um diário preciso do que aconteceu naquela parte da Terra durante a existência do lago.
Quando os pesquisadores do Grupo de Trabalho do Antropoceno (AWG, na sigla em inglês) – um grupo que investiga os resquícios da atividade humana no registro geológico – puseram as mãos na lama desse lago canadense, em julho de 2023, perceberam que a camada referente ao início da década de 1950 tinha quantidades anormais de isótopos de plutônio. Os níveis desses átomos radioativos no solo aumentavam repentinamente nesse estrato, não só no Crawford, mas em vários dos outros onze locais estudados pelo grupo.
A explicação é que, em 1945, os Estados Unidos deram início à Era Atômica com a detonação experimental da primeira arma nuclear no deserto do Novo México, a Trinity. No mesmo ano, o país bombardeou Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Pouco depois, durante a Guerra Fria, EUA e União Soviética passaram a detonar dezenas de bombas experimentais em locais remotos.
A cicatriz geológica dessa época trágica está por toda parte: na Baía de Beppu, no Japão, no lago Sihai Longwan, na China, e nas turfeiras de Śnieżka, na Polônia, para citar alguns exemplos.
Os indícios geológicos da existência da espécie humana não se limitam à radiação: as camadas de sedimento mais recentes da Terra também estão repletas de resíduos de microplásticos, pesticidas, cinzas de poluentes, conchas de espécies invasoras e diversas outras anomalias. Mudanças claramente identificáveis, perceptíveis em todo o globo, e diferentes de tudo que aparece nos estratos inferiores desde a origem do planeta, há 4,6 bilhões de anos.
É por isso que um grupo de geólogos defende que não estamos mais no Holoceno – a época geológica que começou com o fim da última glaciação, há 11,7 mil anos. Na visão deles, já é hora de declarar o início de uma nova época, o Antropoceno (do grego anthròpos, “homem”). A proposta, porém, não é consenso entre especialistas da área, e gera discussões acaloradas. Vamos entender por quê.
A idade nas pedras
Dividimos a história das pessoas em fases, faixas de tempo que representam diferentes estágios de sua vida: infância, adolescência, juventude etc. Essas faixas se subdividem em eventos simbólicos: um término de namoro, o começo da faculdade, uma mudança de cidade ou de emprego, um filho, uma morte, um casamento… Costumamos dizer frases como “na época em que eu morei em Brasília” ou “no tempo em que eu treinava vôlei” para localizar nossas histórias cronologicamente.
Os geólogos fazem algo parecido com a história da Terra. Tudo que aconteceu com o planeta da origem do Sistema Solar até aqui está organizado em uma linha do tempo chamada tabela cronoestratigráfica (uma junção de chronos, “tempo” em grego, com stratum, “estrato” em latim).
Ela é dividida em éons; os éons são divididos em eras; as eras, por sua vez, são divididas em períodos, que são divididos em épocas, que são divididas em idades. Ufa. Estamos atualmente no éon Fanerozoico, na era Cenozoica, no período Quaternário, na época do Holoceno e na idade Megalaiana. Esse é nosso endereço no calendário. As ilustrações desta matéria, diga-se, são como um jogo de tabuleiro em que cada casa é uma época.
Uma escala do tempo geológico bem calibrada é essencial para os cientistas trabalharem. Quem cuida de mantê-la é a Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS, na sigla em inglês). Ela é responsável por definir os padrões e exigências da construção da escala e é dividida em 17 subcomitês, que cuidam cada um de uma parte da linha do tempo. A principal função dessas congregações é definir os pontos de referência que marcam o início e o fim de cada um dos éons, eras, períodos, épocas e idades.
Coloquialmente, os geólogos chamam esses pontos de golden spikes. O divórcio dos seus pais, uma promoção no trabalho ou um novo relacionamento, por exemplo, são golden spikes na sua vida, pois marcam o início incontestável de uma nova fase. Essas fronteiras entre estratos de rocha têm que obedecer a vários critérios geológicos: precisam ser fáceis de reconhecer e estarem presentes em todo o globo.
Um dos spikes mais famosos é a fronteira K-Pg, entre o Cretáceo e o Paleogeno, onde uma concentração anômala do metal irídio – raro na Terra, mas comum no espaço – indica a queda do meteoro de Yucatán, que extinguiu os dinossauros há 66 milhões de anos. Essa dose reforçada de irídio está presente em mais de 300 locais Terra afora.
Segundo o já citado Grupo de Trabalho do Antropoceno – aquele do começo da matéria, que encontrou plutônio no Canadá –, está na hora de aceitar que o impacto humano no planeta já aparece nas rochas com a mesma clareza do irídio do meteoro. “O argumento fundamental deles, muito forte e muito importante, é que os indicadores do funcionamento do sistema Terra deixaram de operar no intervalo de variação do Holoceno”, afirma a professora Sônia Maria Barros de Oliveira, do Instituto de Geociências da USP. “Eles extrapolaram, em muito, esse intervalo de variação.”
Vamos explicar o que isso significa em números. Desde 1950, a concentração de CO2 na atmosfera aumentou de 310 partes por milhão (ppm) para mais de 410 ppm em 2021. A produção de plástico subiu de 2 milhões de toneladas para 360 milhões. A temperatura média global, por sua vez, aumentou aproximadamente 1,2°C desde a era pré-industrial. Acidez dos oceanos, perda de cobertura florestal, taxa de extinção de espécies… todos esses parâmetros (entre outros) deram saltos consideráveis do século 19 em diante.
Se você olhar como todos esses dados andam se comportando, verá que o planeta viveu milhares ou até milhões de anos de razoável estabilidade seguidos de picos repentinos no presente, que formam curvas quase verticais nos gráficos. O nível de CO2 na atmosfera, por exemplo, tornou-se 146% mais alto em apenas 200 anos – o que representa um recorde nos últimos 3 milhões de anos. As taxas de metano e óxido nitroso na atmosfera também são impressionantes, ambas nos seus ápices dos últimos 800 mil anos (ou seja, desde que surgiram os animais).
Juntando todas essas evidências, a golden spike no lago Crawford e os outros três sítios geológicos que também contêm sinais sólidos de atividade humana, o AWG bateu na porta da ICS e apresentou seu caso. A proposta formal para a adoção do Antropoceno na Escala de Tempo Geológica foi feita em 31 de outubro de 2023. Em março desse ano, a responsável pela decisão, a Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário, analisou e votou. Porém, a proposta foi negada.
Ainda não
Não é que os geólogos votantes ignorem as mudanças climáticas ou defendam que não há indícios suficientes de poluição no meio ambiente. A questão é mais complexa do que isso.
O primeiro motivo de ceticismo é que decretar a existência de uma época geológica apenas 70 anos após seu início (se usarmos como marco inicial as bombas atômicas) é desconfortavelmente precipitado para os padrões da geologia, que analisa janelas de tempo de bilhões de anos. Outra questão é que não estamos lidando com fósseis, elementos químicos e outros indícios típicos, e sim com marcadores pouco ortodoxos para os geólogos, como plástico encontrado em aterros sanitários.
Stanley C. Finney da Universidade da Califórnia e Lucy E. Edwards do Serviço Geológico dos EUA afirmam em um artigo recente que “o desejo de reconhecer oficialmente o Antropoceno pode, na verdade, ser mais político do que científico”. Nessa interpretação, a AWG não estaria propondo um novo período para a Escala de Tempo Geológica, e sim forçando a ICS a fazer uma declaração de repúdio ao descuido do ser humano com a Terra.
“Ao contrário de todas as outras unidades de tempo da Escala, o Antropoceno tem implicações sociais e políticas. São as mudanças que nós, seres humanos, estamos causando. Cá entre nós, alguns muito mais do que outros”, afirma Jan Zalasiewicz, geólogo, professor na Universidade Leicester, no Reino Unido e membro do Anthropocene Working Group.
“Mas todos temos que viver e lidar com essas mudanças. Acho que descrevê-las como Antropoceno e reconhecer as suas implicações é desconfortável para vários dos meus colegas, que não estão acostumados a ter esse tipo de conexão feita com as unidades que usam em sua vida e trabalho.”
Zalasiewicz admitiu à Super que a votação não saiu da maneira como ele desejava. Como presidente da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário, é ele o responsável por conduzir a discussão e o processo de voto. Segundo ele, muitos membros da subcomissão queriam votar o mais rápido possível, para se livrar desse problema. O processo rolou com certa má-vontade e sem discussões tão aprofundadas.
Além de tudo, houve uma irregularidade ética. A Comissão de Ética da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS) havia emitido um relatório recomendando que a votação fosse adiada por causa das brigas entre defensores e detratores do Antropoceno. Porém, “só ficamos sabendo desse relatório depois que a proposta do Antropoceno foi negada”, conta Zalasiewicz. “O conselho da IUGS foi desconsiderado.”
O grupo até tentou recorrer à decisão e pedir que fosse anulada. Contudo, no final da história, a ICS e a IUGS acabaram emitindo um relatório em conjunto em que apoiavam a decisão da Subcomissão: nada de Antropoceno, e ponto final.
De modo geral, a discussão passou longe da letra fria das evidências científicas e ficou em um campo mais filosófico e ideológico. Houve pouca resposta aos argumentos e evidências apresentados pelo AWG; dados sobre isótopos radioativos, espécies invasoras e poluição por pesticidas foram deixados de lado. E isso, claro, é normal: a ciência é feita por humanos, e as discussões em sua vanguarda estão sujeitas aos nossos sentimentos, opiniões e preconceitos.
“Lembro-me de que, quando surgiu a teoria das placas tectônicas, muitos dos meus colegas achavam uma loucura pensar que havia continentes à deriva na superfície da Terra, que eles colidiam uns com os outros. É claro que agora sabemos que isso é real. É verdade”, diz Zalasiewicz. “Temos que continuar trabalhando, continuar debatendo, continuar discutindo, continuar reunindo as evidências e continuar tentando entender o Antropoceno”, diz.
Para a AWG, a negação da proposta “mascara um evento na história da Terra que é de uma magnitude pelo menos igual a outras mudanças que desencadearam muitas transições entre épocas”.
Mas, embora eles tenham perdido este round do embate técnico, a ideia de que a humanidade já deixou uma cicatriz indelével no registro geológico está se espalhando no imaginário popular. Com ou sem oficialização, “Antropoceno” já é um termo muito usado, seja pela mídia, seja por pesquisadores – principalmente das ciências sociais e humanas.
No fundo, é isso que importa. Com a temperatura média global subindo, a perda de biodiversidade aumentando e a poluição do solo, da água e do ar cada vez maiores, o reconhecimento oficial do impacto humano na história da Terra provavelmente é mais uma questão de “quando” do que de “se”.
Embora a inclusão do Antropoceno na tabela cronoestratigráfica seja um passo simbólico, o fundamental agora é tomar medidas práticas para garantir que, daqui 100 ou 200 anos, ainda haja humanos por aqui para ter essa discussão – e que eles vivam em um planeta onde o medo de uma catástrofe ambiental seja coisa do passado.