A banana está em perigo. Conheça as soluções
Robusta, nutritiva e abundante, ela é a fruta mais consumida do mundo. Mas também tem um ponto fraco: as bananeiras são geneticamente idênticas, clones umas das outras. Isso significa que uma doença poderia arrasar a produção mundial. Entenda o que ameaça a banana – e a corrida para tentar salvá-la.
CCarlos II, rei da Espanha entre 1665 e 1700, também era conhecido como Carlos, o Enfeitiçado. O apelido veio da aparência dele, que tinha o rosto estranhamente deformado, seu déficit cognitivo (só começou a falar aos 4 anos de idade) e dos muitos problemas de saúde que enfrentou ao longo da vida.
A bananeira é o oposto disso. Trata-de uma planta robusta e viçosa, que cresce rápido e dá muitos frutos: a banana é a fruta mais consumida do mundo, com 125 milhões de toneladas produzidas por ano (1) – o equivalente a 15 quilos por pessoa. Mas ela tem um ponto em comum com o monarca espanhol.
Carlos II foi o resultado de uma série de casamentos consanguíneos, em que os membros da dinastia Habsburgo tiveram filhos entre si ao longo de várias gerações (ele, por exemplo, nasceu do relacionamento amoroso entre Felipe IV e Mariana da Áustria, que eram tio e sobrinha). Fizeram isso porque não queriam compartilhar o poder real com gente de fora da família.
Mas a prática teve uma consequência terrível: os descendentes ficaram mais e mais parecidos geneticamente, e foram acumulando mutações causadoras de doenças.
Carlos II foi o que mais sofreu. Morreu aos 39 anos, de glomerulopatia (2), uma doença genética que afeta os rins. Não deixou descendentes. E os Habsburgo, que tanto queriam o trono, o perderam.
A bananeira domesticada, cujas frutas nós comemos, não tem sementes. Isso a torna muito mais agradável de consumir. E também significa que a planta se reproduz de forma assexuada: o agricultor simplesmente corta um pedaço dela e enterra em outro lugar [veja no quadro abaixo].
Nasce uma nova bananeira – que, eis o problema, é geneticamente idêntica à anterior. Ela não tem, como Carlos II não teve, um pai e uma mãe com genes bem diferentes, cuja mistura aperfeiçoa o DNA e ajuda a proteger contra doenças. As bananeiras são clones – por isso, um único patógeno pode exterminá-las todas.
E já existe um: o Fusarium oxysporum. Trata-se de um fungo que se desenvolve no solo, e infecta as raízes das bananeiras, impedindo que elas puxem água e nutrientes.
A planta não se desenvolve, não dá frutos, e morre. Já o fungo gera esporos bastante resistentes, que se espalham por meio das pegadas de animais, restos de plantas infectadas, trânsito de veículos e pessoas e até pelo escoamento de água da chuva.
Após a infecção, o solo fica contaminado por mais de 30 anos, e não há nada a fazer: o F. oxysporum é imune a todos os agrotóxicos.
Nos anos 1950, um surto desse fungo devastou as plantações de vários países – e até hoje afeta as bananas que comemos. Agora, pode voltar a acontecer: uma nova variante do F. oxysporum está se espalhando pelo mundo.
Ela detonou uma corrida para tentar encontrar soluções antes que o pior aconteça – e a produção mundial seja abalada, transformando a banana num alimento escasso e caro.
O preço da banana
A genealogia da banana é um mistério. Os cientistas ainda não sabem muito sobre como ela evoluiu. Tecnicamente, a bananeira não é uma árvore, mas uma erva – a maior do mundo. Existem cerca de mil tipos, cada um com características próprias.
A banana comestível teria surgido no sudoeste asiático. Acredita-se que, entre 7 mil e 5 mil a.C., os nativos da Papua-Nova Guiné teriam feito cruzamentos e domesticado as bananeiras selvagens (cheias de sementes duras, de quebrar os dentes). E voilà: desenvolveram bananeiras que produzem frutos sem sementes.
Aqueles pontinhos pretos dentro da banana, caso você esteja se perguntando, não são sementes: trata-se de óvulos não-fecundados. Isso porque os papuásios descobriram um método curioso para reproduzir a planta: bastava cortar e replantar um pedaço dela.
Dominaram a reprodução assexuada das bananeiras (modalidade que dispensa a fecundação de óvulos) – e abriram o caminho para o cultivo agrícola dessa planta, que se tornou uma fonte abundante de alimento.
Os séculos se passaram, e, à medida que as rotas comerciais foram se espalhando pelo mundo, o mesmo aconteceu com a banana – principalmente em áreas tropicais e subtropicais, em países da África e da América Central.
Foi quando ela chegou aos EUA, contudo, que a coisa mudou de patamar. Os americanos foram oficialmente apresentados à fruta em 1876, durante uma feira na Filadélfia. A novidade encantou o público, que imediatamente passou a consumir pencas e pencas de banana.
Foi um verdadeiro milagre comercial. Em menos de duas décadas, os americanos já estavam comendo mais bananas do que maçãs ou laranjas. De olho nesse mercado, a Boston Fruit Company começou a comprar terras na América Central para cultivo e exportação da banana a partir de 1885.
Em seguida, outras empresas frutícolas americanas fizeram o mesmo em países como Costa Rica, Guatemala e Honduras. Compraram quantidades enormes de terra (por valores irrisórios), devastaram florestas tropicais e iniciaram a produção prometendo empregos, ferrovias e desenvolvimento tecnológico.
As frotas bananeiras foram as primeiras a incorporar refrigeração, e a indústria foi a pioneira no uso de produtos químicos para retardar o amadurecimento do fruto. Nenhuma dessas invenções, amplamente utilizadas hoje, existia antes da banana – frutas como maçãs, laranjas e uvas só podiam ser cultivadas e distribuídas localmente, porque estragavam muito rápido.
Criada em 1899, a United Fruit Company (UFC) – atual Chiquita Brands International – se tornou a maior empresa do setor. Era tão poderosa que, na primeira metade do século 20, mandava nos governos da Guatemala e de Honduras, onde mantinha plantações – foi daí que surgiu a expressão “república das bananas”.
A UFC recebeu diversas vantagens, como isenção de impostos e contratos de exclusividade (3) na Guatemala, onde teve um crescimento vertiginoso: em 1950, a empresa era dona de 1,6 bilhão de hectares, ou 70% de todas as terras cultiváveis do país.
Em 1951, Juan Jacobo Árbenz Guzmán, de apenas 38 anos, foi eleito presidente da Guatemala com a promessa de fazer duas reformas: uma trabalhista e outra agrária, que garantissem salários justos e devolvessem parte da terra aos pequenos agricultores.
A United Fruit, obviamente, não gostou. Se opôs duramente ao novo governo, e em agosto de 1953 conseguiu convencer o presidente dos EUA, Dwight D. Eisenhower, a patrocinar um golpe de estado na Guatemala.
A operação, de codinome PBSuccess, foi organizada pela CIA – que armou, financiou e treinou 480 homens, liderados pelo coronel guatemalteco Carlos Castillo Armas, e também organizou um bloqueio naval.
As tropas de Castillo invadiram o país em 18 de junho de 1954, o Exército não reagiu – e, nove dias depois, o presidente Guzmán acabou forçado a renunciar. A Guatemala mergulhou em uma guerra civil que duraria 36 anos. E a United retomou seu poder. Mas ela logo sofreria uma vingança, da natureza.
O mal do Panamá
A United Fruit não operava só na Guatemala e em Honduras. Também estava presente em outros países da América Latina, como a Costa Rica, o Panamá e a Colômbia (onde em 1928, sob pressão da empresa, o governo massacrou uma greve de plantadores de banana, caso recontado por Gabriel García Márquez no clássico Cem Anos de Solidão).
Era uma empresa poderosa e lucrativa, com 95 navios próprios – incluindo um só para levar turistas americanos à América Central – e grandes campanhas de marketing protagonizadas por Chiquita, uma banana cantora (segundo a empresa, inspirada em Carmem Miranda) que ensinava ao público os benefícios da fruta.
A United plantava uma variedade de banana chamada Gros Michel – é possível produzir tipos diferentes cruzando variedades selvagens. Ele foi trazido da Ásia para a América Central por franceses, e é similar à banana-prata.
Mas, durante a década de 1950, esse império quase ruiu. O fungo Fusarium oxysporum TR1 (abreviação de “raça tropical 1”, em inglês) apareceu do nada e devastou as lavouras da empresa, começando pelo Panamá.
Foi uma onda violenta, bem pior que as pragas tradicionais. Lembra que as bananeiras, desde as primeiras plantações em Papua-Nova Guiné, foram reproduzidas de forma assexuada? Então: elas são geneticamente idênticas. Se uma doença pegar uma, pegará todas.
A indústria da banana entrou em colapso, ameaçada de desaparecimento. Foi aí que surgiu a ideia de plantar outra variedade, a Cavendish (o nome vem do duque britânico William Cavendish, que a importou da Mauritânia para a Europa pela primeira vez em 1834).
Ela não era suscetível à doença e tomou o lugar da Gros Michel, tornando-se a banana mais exportada no mundo. Hoje, representa cerca de metade da produção global.
É a mais consumida no Brasil (onde a conhecemos como nanica). Praticamente todas as bananas exportadas para os EUA e a Europa são Cavendish, pois elas também têm outra vantagem: demoram para amadurecer, resistindo a longas viagens.
E ficou tudo bem. Só que o F. oxysporum foi evoluindo. Os tipos seguintes, TR2 e TR3, não chegaram a causar grandes problemas (um ataca a banana Bluggoe, que não é muito comum, e o outro atinge flores, do gênero Heliconia).
Mas o TR4, que foi detectado pela primeira vez em Taiwan, nos anos 1990, tem um potencial destrutivo muito alto: além de matar as bananeiras Gros Michel, ele também arrasa as Cavendish. Ou seja, poderia comprometer a maior parte da produção global de banana.
Na última década, o fungo apareceu na África (2013) e na Austrália (2015), e mais recentemente desembarcou na América Latina: primeiro na Colômbia, em 2019, depois no Peru e no Equador, em 2021. Até agora 20 países, em quatro continentes, já registraram casos do TR4. O Brasil, felizmente, ainda não.
“Existe um grande trabalho de monitoramento e vigilância em possíveis rotas de entrada do TR4 no Brasil”, afirma Fernando Haddad, doutor em fitopatologia e pesquisador da Embrapa.
Mesmo com as medidas sanitárias para tentar impedir a chegada do fungo ao país, é provável que isso aconteça um dia (como ocorreu com o mal do Panamá, que afeta plantações por todo o Brasil). Ele vai se espalhar. Por isso, a ciência tem buscado soluções antes de um eventual surto de TR4.
A primeira é o cruzamento de espécies. Diversas empresas e governos patrocinam pesquisas nesse sentido, para tentar gerar uma bananeira imune. “Já sabemos que há resistência ao TR4 em genótipos selvagens da Musa spp. (nome científico da banana) melhorados pela Embrapa”, afirma Haddad.
A ideia é tentar transferir essa resistência para os tipos comerciais. O cruzamento entre dois tipos de bananeira é feito coletando pólen de uma delas, que é usado para fertilizar os óvulos da outra, gerando uma nova espécie. As variedades anti-TR4 da Embrapa estão sendo testadas na Colômbia, onde o fungo já está presente.
O principal desafio dessa estratégia é gerar uma bananeira que, além de ser resistente ao fungo, produza frutos atraentes, com as mesmas características das bananas que consumimos hoje – como sabor, produtividade, formato dos cachos e tempo de prateleira (durabilidade nos supermercados). A Embrapa espera conseguir até 2030.
Mas, se isso não der certo ou demorar demais, há uma segunda opção: a banana transgênica. E algo mais exótico: uma banana geneticamente modificada, mas que não é classificada como tal.
A brecha genética
As bananeiras são muito afetadas pela infestação de nematoides, um tipo de verme que vive no solo. Mas cientistas australianos descobriram que um deles, o C. elegans, também tem uma característica positiva: possui um gene que o torna imune ao fungo TR4 (o que faz sentido, já que o verme tem de sobreviver em solos infectados por ele).
Os pesquisadores isolaram esse gene, o introduziram 4 na banana Cavendish, e submeteram a nova espécie a um longo teste. Ela foi plantada em uma lavoura comercial no norte da Austrália, onde o fungo TR4 já se tornou endêmico.
A experiência, que durou três anos, também incluiu bananeiras comuns e um tipo híbrido, que recebeu o gene RGA2 (extraído de uma espécie selvagem resistente ao fungo mortal).
Para ter certeza de que o TR4 iria atacar violentamente a plantação, os cientistas enterraram pedaços de plantas infectadas no solo. As bananeiras comuns, como esperado, foram arrasadas.
Mas as duas espécies transgênicas sobreviveram sem doenças. É um resultado impressionante, mas preliminar; elas ainda estão sendo submetidas a mais testes de resistência.
Essa estratégia tem um porém: o receio da sociedade com os alimentos transgênicos (que receberam genes de outros seres). Eles enfrentam restrições regulatórias em vários países, e são rejeitados por boa parte do público.
Isso não afeta tanto a soja, que as pessoas não costumam consumir diretamente. Mas, se uma empresa lançasse uma banana transgênica, ela certamente causaria hesitação nos consumidores.
E se fosse possível mexer no DNA da banana, e mesmo assim ela não fosse considerada transgênica nem geneticamente modificada? Essa é a ideia, meio mirabolante, da empresa britânica Tropic Biosciences. Ela criou uma técnica chamada GEiGS (“silenciamento genético induzido pela edição de genoma”, em inglês), que explora um detalhe interessante.
O código genético dos seres vivos é composto por dois tipos de DNA: o codificante, que dá origem às proteínas que formam os tecidos do organismo, e o não-codificante, que não faz isso. 41% do DNA da banana é não-codificante (5). Ele ainda não é plenamente compreendido, mas algumas das suas funções já foram descobertas.
Uma delas é produzir o chamado RNA de interferência – que tem o poder de “silenciar” (impedir) a produção de certas proteínas [veja no infográfico acima]. E é justamente nisso que a Tropic quer mexer.
“Nós editamos os genes não-codificantes da própria planta hospedeira, e redirecionamos sua atividade silenciadora para qualquer alvo genético escolhido”, diz o engenheiro Gilad Gershon, CEO da empresa.
Como não recebeu genes de outro organismo, a bananeira da Tropic não é transgênica. E a empresa entende que, pelas leis atuais, ela não pode ser considerada geneticamente modificada (já que a técnica não altera o DNA codificante, ou seja, não muda os genes em si).
Trata-se de uma brecha regulatória. E permite que a banana da Tropic seja vendida como se fosse uma variante comum, driblando a resistência do consumidor.
A empresa usou sua tecnologia para criar uma bananeira que não produz a enzima polifenol oxidase, e por isso não fica marrom. Em 2023, as Filipinas foram a primeira nação a autorizar o cultivo dela.
Agora, a Tropic desenvolve uma espécie imune ao fungo TR4 (o que pode ser feito silenciando uma ou mais proteínas das quais esse micróbio depende). No futuro, a empresa pretende unir as duas variedades numa só, criando uma superbanana – mais resistente ao tempo e, sobretudo, à doença.
Até que alguém encontre uma solução para o TR4, seja qual for, a ameaça do fungo continuará rondando as bananeiras do planeta. Muitos povos dependeram da banana, ao longo da história, como fonte de calorias. Mas, agora, é ela que depende da gente.
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Fontes (1) Embrapa Mandioca e Fruticultura, 2021. (2) Carlos II: del hechizo a su patología génito-urinaria. A López e outros, 2009.
(3) A United Fruit Company e a Guatemala de Miguel Angel Asturias. A Vergara, 2010. (4) Transgenic Cavendish bananas with resistance to Fusarium wilt tropical race 4. J Dale e outros, 2017. (5) The Complete Chloroplast Genome of Banana (Musa acuminata, Zingiberales): Insight into Plastid Monocotyledon Evolution. G Martin e outros, 2013.